quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Body & Soul

Minha verve jazzística adveio justamente de minha formação batista. Meu pai foi pastor sob essa denominação do protestantismo americano (Junta de Richmond, TX) durante 40 anos... Sim, imagine uma infância inteira sendo anfitrião em nossa casa de missionários texanos rosados em seus ternos azul-claro com chapelões brancos e lacinho de couro preto à guisa de gravata e que insistiam em pronunciar meu nome como Ornénei com o R mais retroflexo do que o do mais orgulhoso ponte-pretano.

A hinódia protestante deve muito à música vitoriana que, temperada pelo puritanismo redneck, perfazem um blend tão entorpecente quanto o bourbon que rega as noites de enforcamentos e cruzes em chamas. Não sei se foi o amor que tenho à minha mãe-preta (Dona Evinha, hoje com 96 anos), ou os anos todos de castração estetizada com harmonias e entoações sugestivas - até mesmo o pitch apropriado de vibrato; o fato é que em minha adolescência descobri no jazz, em resposta ao imenso 'NÃO' à vida da carne e 'do mundo' cantado pela música branca sulista protestante, um poderoso 'SIM' ao corpo e à vida mundana em todas as suas maravilhosas e terríveis instâncias. O jazz não dá voz apenas à ternura lasciva, à deliciosa sacanagem, mas também à dor da traição, do abandono, da saudade. 'A cigarette that bears a lipstick's traces' e todas essas foolish things que compõem o mundo dos sentimentos silenciados pela moral religiosa...

É claro que não pretendo reduzir o jazz a apenas esse aspecto, uma vez que o jazz também bebeu do soul e manteve ao longo das décadas essa espécie de promiscuidade com a música gospel - lembrando que a liturgia negra (sobretudo a batista) sempre teve um caráter muito particular, com seus coros e bandas repetindo até o êxtase os refrões sobre os quais o pregador improvisava, bem à maneira do espírito tribal que atravessou o atlântico nos porões dos navios. Uma forma de culto certamente muito diferente do protestantismo branco - em lugar da contida e asséptica intelectualização da fé, em lugar da sublimação dos ritmos do corpo, nos ritos negros os cantos, danças, palmas e êxtase eram os veículos de expressão da alma.

A própria palavra 'jazz' marca isso em suas diversas etimologias. 'Jazz' significa primeiramente a habilidade ou talento sexual. Como as moças negras que, olhando o jeito de olhar e andar de um rapaz que se aproxima, diriam "hmm... he has some jazz, doesn't he?" ou dos rapazes negros que observam sorrindo uma moça subir a escada: "oh, she has that jazz, man...". Mesmo em português usamos outras expressões pra isso e que vêm do mundo do jazz: 'fulano tem um swing...' ou 'fulano tem o groove...' ou 'fulana tem uma pegada...'. 'Jazz' significa também o barulho que se faz ao fazer sexo. Como na mesa de café da manhã da pensão negra, a velha ranzinza reclamaria da indiscrição do quarto ao lado: 'Goddamn, I've heard that jazz all nite long... and I don't have to listen to this...'. Por fim, 'jazz' significa o próprio ato sexual em si. Como o malandrão pimp que sorri um milhão de dentes para a mocinha e diz 'let's jazzzzz, babe...'.

Não é à toa que a música que essa palavra designa é a que floresceu no Red Light District de New Orleans, e que proliferou nos Joints no meio dos matinhos pelo país, e depois nos clubes 'adultos'. A linguagem foi se moldando conforme preferenciais para o sexo: recebia as melhores gorjetas o pianista que, com sua música, mais eficientemente induzisse na dança da garota os movimentos que mais excitassem o cliente. Quem não tem consciência desse profundo comprometimento do jazz com a visceralidade dos sentimentos em sua expressão mais rough, jamais poderia entender a voz de uma Billie Holiday, por exemplo, nem as piscadinhas que os músicos de jazz dão enquanto tocam. Também não é por acaso que o humor do músico de jazz é muitas vezes até tão grosseiramente 'besteirento', nem que as piadas quase sempre envolvem trocadilhos e duplos-sentidos. Muitas vezes percebe-se que um músico 'tem swing' ou não muito antes de ouvi-lo, apenas pela maneira como chega caminhando, por seus gestos ou pela maneira como conversa.

O espírito do 'jazzman' é o do homem 'do mundo', do ponto de vista do protestantismo puritano, sulista e branco - mas o quanto o 'jazzman' sabe disso, se apropria disso, questiona sua origem e dá a volta nela não poderia ter tido melhor expressão, com a verve e elegância que lhes eram características, na 'It Ain't Necessarily So', de Gershwin, praticamente um sermão às avessas, em que o malandrão Sportin' Life ironiza a imensa improbabilidade das histórias da bíblia.


It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
De things dat yo' liable
To read in de Bible
It ain't necessarily so

Li'l David was small but oh my
Li'l David was small but oh my
He fought big Goliath
Who lay down and dieth
Li'l David was small but oh my

Oh Jonah he lived in de whale
Oh Jonah he lived in de whale
For he made his home
In dat fish's abdomen
Oh Jonah he lived in de whale

Li'l Moses was found in a stream
Li'l Moses was found in a stream
He floated on water
'Til ole Pharaoh's daughter
She fished him she says from that stream

It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
Dey tell all you chillun
De debble's a villain
But 'taint necessarily so

To get into Hebben
Don't snap for a sebben
Live clean, don' have no fault
Oh I takes de gospel
Whenever it's pos'ble
But wid a grain of salt

Methus'lah lived nine hundred years
Methus'lah lived nine hundred years
But who calls dat livin'
When no gal'll give in
To no man what's nine hundred years

I'm preachin' dis sermon to show
It ain't nessa, ain't nessa
Ain't nessa, aint' nessa
It ain't necessarily so

terça-feira, 16 de novembro de 2010

As horas

Afundada na poltrona, contava os passos trêmulos da perna bailarina dos ponteiros a girar o compasso pontiagudo no mostrador do pesado relógio de parede do quarto. A existência arrastava-se assim minúscula e nervosa, uma fileira interminável de formigas de minutos marchando freneticamente rumo a lugar nenhum. Seguia o brilho do taco encerado até a porta, por onde, ao findar de horas eternas, Lucas entraria trazendo novamente a vida.

Contavam as horas diariamente durante oitenta e um dias dolorosas lanças pontiagudas em sua garganta delgada, uma a cada hora. Ah, sim, mas a vida retornaria - mas também tão logo novamente fosse embora, ei-las ainda ali, cravadas em sua traquéia, todas, novamente... Assim, portanto, como sempre: a asfixia tão póstuma quanto premeditada, e inescapável.

O espelho continua com a mancha de seu olhar fixo; a cama com a sombra quente de seu corpo; o seu quarto pequeno e quadrado impregnado com o perfume de suas pernas, costas, cabelos e testículos - tudo envolto pela fragrância amadeirada e picante do frasco de vidro topázio no toucador. Os objetos do quarto com as marcas de suas mãos fracas e pesadas. Seu retrato no criado mudo, um refém da atmosfera densa da câmara; seu quarto também todo ele um retrato infectado por ele, podendo apenas ela tocá-lo - tocar o tempo longo que não viveu. A fotografia do quarto seria como uma meia-luz transposta para o papel, entretanto, nem o papel havendo, é apenas sombra, e sonho, e nada.

Lucas não chegara, não chegaria. Faziam-lhe companhia apenas as horas mornas, arrastando-se sob seus pés como um chão movediço em que se afundava lentamente, engolido pela dor de sua ausência, pela dor física e a impossibilidade de respirar.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Para viver o cotidiano

7. Tomei hoje de uma água que goteja de uma fonte escondida num pico quase inacessível de uma montanha gelada do Tibet. Não tinha mais do que um copo pequeno; cada gota, preciosa. Tinha gosto de séculos escondidos, de silêncio e de água.

* * *

8. Em uma outra montanha, essa na Suíça, há uma pequena caverna interna a meio termo entre o topo e o sopé, onde um camponês desenvolveu um curioso hábito: colhe cuidadosamente os morangos silvestres no tempo exato de maturação, quando já começam a se tornar frágeis de tanta doçura, e deposita-os, às braçadas, nas pequenas poças naturais que se formam do degelo da caverninha. Ficam ali marinando nessa água tão gelada uma paisagem toda vermelha de frutos que, com a ação do tempo e os depósitos de cristal que sobre eles se precipitam, escorrem num espesso fio carmim pela rocha a que, metros abaixo, mais tarde, leva o camponês a canequinha de biscuit de sua neta para enchê-la de um doce segredo.

* * *

12. Ontem a água inesquecível que tomei foi o último gole do cantil de um comandante romano ao final da campanha na Germânia, ao amanhecer. Do alto da sela, estendeu-me o cantil e sorriu. Tinha gosto de zimbro, couro e terra escura. A cada gole, um golpe de gládio, uma colina.

* * *

24. Vá, menino, dance com teus pés pequenos e delicados sobre essas uvinhas no lagar gelado. De cada bago dourado, ardendo de doçura, seja assim extraído o sumo mais primeiro, mal as finas cascas se machuquem, o primeiro e mais sutil néctar, pela leveza com que os pisas. Escorra essa seiva libatória por condutos engenhosamente esculpidos no gelo trazido das montanhas, lentamente, vertendo-se em minha taça, e eu dela cheia beba, e sacie minha sede de tanto prazer e de tanta vida.

* * *

31. Em um jardim nos fundos de uma centenária propriedade japonesa há uma fonte de pedra, sob as cerejeiras. Mal se vê a bacia quadrada de água, coberta que fica com as folhas das árvores e dos arbustos de jasmim. Não há templo nenhum que a vele, nem desenhos precisos que a recortem: a natureza parece placidamente recobrir a superfície da água fresca e perfumada que, levando-se à boca com uma pequena vasilha de cerâmica rústica, equivale a uma prece silenciosa que abençoa o peito com seu frescor.

* * *

63. Já havia mais de um dia que não tinha sinal de mais nenhum inimigo; sentia-se tão fatigado que sequer sabia se já havia dormido ou não – restava apenas continuar caminhando para longe, o quão mais longe fosse. A armadura de couro engrossada por pedaços de crosta de lama acima e uma malha de sangue abaixo pendia do corpo como uma ferida. Era o último etrusco de sua dizimada tribo – viu pendendo num galho fino um damasco maduro tremulando com a brisa do vale: tomou-o em sua mão sentindo a maciez que se lhe adivinhava a doce suculência, e mordeu-o.

* * *

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O meio-dia de uma musa

Como uma maresia morna de mel. Sentia-se inchada de vida transbordante: seu corpo ondejava pleno da maré de lua cheia no seu ventre, em cuja praia coalhava uma imensidão de minúsculos caranguejos mortos, ninhadas de ovas de peixes aspergidas em arco-iris, rendas de algas balançando adeuses, borbulhas secretas dos respiros de areia movediça, destroços de carrancas de mastros naufragados e a memória do canto profundo de sereias de si mesma.

A memória era de antes das palavras que pudesse ter para dizê-lo: até tardiamente ainda aninhada no seio de dona Iara, o cheiro viciante do leite na gordura do suor da pele num doce contraponto com as notas suaves da lavandinha com que a mãe sempre saía do banho, vinha vez ou outra Seu Dondim enciumar “mas não está grande demais essa daí pra ainda isso, não?” com um sorriso que deslizava sua mão de homem pelo braço moreno com que ela me segurava. E a beijava, fazendo de um carinho com a palma da mão toda em meu rosto um pudor de almíscar para meus olhos – sabendo o ruído líquido da conversa dos lábios dos dois, sugava-a ainda com mais força, toda uma teologia da carne ali resumida naquela efêmera trindade. Agarrada às costelas de sua cintura, quisera engolir não apenas o seio nem todo o corpo de sua mãe, mas também as mãos e os beijos de seu pai, e o universo todo dentro de seus olhos fechados, de onde nebulosas faiscavam vaga-lumes multicores, e do rubor cálido de suas bochechas reinventava mil cosmos rodopiantes cujos mapas nunca escritos eram danças e sinfonias inacabadas.

Povoaram seu secreto harém de pelúcia amantes inesquecíveis cujo olhar cúmplice de botão de aviamento ainda parecia dar na memória das noites insones de terça-feira a piscadela jamais dada. “Ponha uma roupa, menina, que aí vem gente.” Quisera passear sua vitalidade trotejante de pônei pela sala de visitas, rodar estrelinhas de ginástica, saltos-mortais nas almofadas de veludo do sofá. Não podia imaginar senão que fosse esse da vida o maior segredo e o maior acordo, que todos – sem saber por que – apenas silenciavam sobre o que não concebia ser diferente para alguém que respira.

Vieram as mortes das vidas, as mortes para mais vidas, e seu corpo mudou de voz: sorria agora em gotas densas e de um perfume entorpecedor - tinha certeza mesmo de que chegava a fisicamente tocar quem quer que fosse com a aura quente de odor que, como um halo, emanava por todo perímetro de sua pele. Seu quarto, à noite, se transformava no planeta Auleolis, com seus dois sóis vermelhos noturnos, e sua densa atmosfera de um ar cor de opala, caramelo e baunilha. Feria-se de si, de ânsia de tanta vida. Como a fenda na árvore, cultivava sua colméia e era ela mesma sua própria abelha rainha, de barriga para cima no lençol branco pequeno demais para sua inquietação que inchava seu ventre e endemoninhava suas pernas. Com o desespero da fome desajeitada dos filhotes da ursa, grunhia de rosto afundado na maciez escura do travesseiro, escavando por entre a armadinha de suas coxas. A cereja inalcalçável por entre os arbustos, a ubiqüidade do vôo da libélula, o rumorejar do rio por entre as pedras, o arfar dos cavalos jovens, a longa cabeleira da relva a se estender para além da floresta por toda planície ensolarada. Logo viria o entardecer.

E flautas e danças trouxeram a ela seu fauno, o que sua juventude merecia: possesso de vigor, velho, sábio e animalesco; fendeu-a como o mais branco mármore nas mãos do mais apaixonado escultor. Fez-se toda sua lisura sob seus dedos, poliu com sua saliva cada filigrana da poesia firme de seus poros, fe-la território conquistado de todos seus impérios, e assentaram-se ambos no trono de sua mútua e delirante diarquia. Era ele quem vertia sobre sua fonte cântaros e cântaros de libações diárias, irrigação da fertilidade da terra do reino, perfuração de poços para sua sede inesgotável.

Foi-se logo ao longe, e restou ela sozinha. Reclamaram tão logo sua saudade seus mananciais, lacrimejando pelas coxas abaixo até mesmo quando andava à rua. Voltaram as atmosferas quentes de Auleolis a preencher as noites de seu quarto, cogitou mil motins que pudessem estar acometendo suas vísceras; consultou-se, por fim, com as colegas de faculdade quem fosse que assim tanto pudesse sofrer da falta, e suspeitaram doença. Foi preciso exames complicados e o médico com as mãos postas sobre a mesa com os dedos entrecruzados, para lhe dizer: “não, minha filha, não há nada de errado com você. É só o caso excepcional do número maior de glândulas que faz com que você tenha tanta secreção assim. Provavelmente terá mesmo que aprender a conviver com isso ao longo da vida...”.

A calçada saltitava ninfas. Não via a hora de dizer a ele. Ela toda plena de vida. Mesmo na rua, foi a mão por dentro do cós da calça buscar seu fruto, sua dádiva: levou os dedos de volta ao rosto e inspirou de olhos fechados a névoa de auréola que os umedecia, sons de trompas e música das esferas, toda a eloqüência de sua feminilidade incontinente. Dourados oceânicos turvavam sua vista, um som doce e profundo era o coral de toda a natureza à sua volta, muros de seixos, pracinhas com seus cachorros, chão de folhas mortas de palmeira, areia sob a sola das sandálias. Toda paisagem existia saindo dela, como uma maresia morna de mel.

sábado, 21 de março de 2009

Ah, mas não queria. Não queria mesmo. Podia ser o fim do mundo, que não estava nem aí. A última coisa do mundo que precisava ouvir àquela hora era a voz pedinte de Rita. Só uma coisinha, só uma coisinha que se transformava numa tarefa interminável que lhe tomava a tarde toda e logo o dia já escurecia e a sensação de não ter feito nada senão atendê-la em suas coisinhas e coisinhas e a puta que o pariu. Puta merda. Saiu e bateu a porta, como se quanto mais forte batesse menos o telefone tocasse atrás de si. Passou um caminhão de transporte explicando com o desenho na caçamba de alumínio a sua vida: era ele como aquela bolinha orbitando à volta de um núcleo, rodando, rodando elipticamente em torno dela, uma vertigem míope e enlouquecida no carrossel inescapável da gravidade de suas inesgotáveis demandas. Pensou logo que esse era um modelo muito teórico, esquemático, condescendente. Talvez sua vida fosse mais realisticamente explicada de acordo com as teorias mais avançadas das partículas elementares: na verdade ele não estava aqui nem ali, à volta dela, mas em qualquer lugar indefinido, perdido em não mais que apenas uma nuvem de probabilidade à sua volta, sua vida um postulado da incerteza como única lei.

Entrou no café, fez-se desinteressado a ler o cardápio para mandar embora a garçonete gordinha que sempre o atendia mal, e, assim que passou por ele a menorzinha, nova ainda na casa, fez-lhe psiu e pediu os cafés: um curto e um canelinha. Ainda podia sentir no couro gasto do sofá quadrado a lembrança incomodativa do cheiro de Anete com seu cigarro pretensioso e seus sonhos de um existencialismo glamuroso que lhe dava engulhos. A cada pausa que assoprava com sua fumaça pelo ar minúsculo sob a arandela, uma vontade de mandá-la calar a boca, esmurrar, levantar-se e sair para nunca mais voltar até que a urgência de uma transa certeira o convencesse a passar por todo esse suplício novamente. Vida merda, essa, em que existe Chico Buarque. Era ainda o cacoete da gentileza aprendida protestantemente na infância que o fazia perguntar sempre “Em que você está pensando?”, como seguimento compulsório aos seus longos silêncios retóricos, que os fazia durar ainda mais alguns insuportáveis instantes antes de finalmente inaugurar a enxurrada de merdas que começavam sempre invariavelmente com um odiosamente promissor “sei lá...”. Sei lá e soubesse lá mesmo alguma coisa, ao invés de abrir com isso a porteira para a vara nojenta de porcos que se precipitavam pelo barranco abaixo da ignorância confusa de sua falação, como se montado no pescoço de cada uma de suas palavras estivesse um demônio oportunista que as propelisse para o abismo que se tornara uma espécie de palco e segundo lar para ela: lá no escuro amplo de sua perdição sabia desempenhar aquele papel nojento da auto-comiseração como prelúdio para o sexo. Fodia-lhe de raiva, como se a cada enfiada sua a estivesse bombeando para fora do poço em que se afundava até que ela, trazida de volta à superfície, pudesse vislumbrar ao gozar em seus braços o ar fresco da vida cotidiana e verdadeira daqui de cima – para, em seguida, saciado, soltar de uma vez a corda gasta com que a puxara, devolvendo-a numa queda mais rápida e cega ao fundo que lhe era familiar: uma desculpa qualquer, e o dinheiro para o táxi. Foda-se; se quer a miséria da alma, não seja eu a te negar alimento. Por que? Sei lá e o inferno que converse com o inferno.

Ou isso ou o sei-lá mudo e sincero e por isso não menos angustiante de Joana. O “lá” onde ela respondia saber era realmente um não-lugar. Fodê-la era portanto uma navegação utópica, uma exploração adentro do macio mar de nada mais quente e vazio imaginável, sobre o qual um bando de gaivotas enevoava o céu com um gorjeio tão branco e silencioso como seus insondáveis pensamentos. E foi ao comer uma salada de terça-feira que passou a língua lentamente pelas fibras macias e amanteigadas do coração de um talo de palmito: qual era exatamente a diferença entre comer Joana e um palmito, um travesseiro firme, um combinado de sashimis de salmão, o estofamento macio do carro do avô? Sei lá, e o silêncio das ondas de Joana, um horizonte e abismo.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

(II: 10-14)

12. Em novembro de 1873 partiu da pequena cidade de Varna um grupo de quatro professores búlgaros muito pios numa longa e funesta expedição dita a Bagdá. A viagem pelo Negro em um confortável barco foi provavelmente providenciada por antigos amigos do Departamento de Arqueologia da Universidade de Sófia, e aproveitaram-na para checar os últimos cálculos e atualizar as previsões. Atravessaram o estreito de Bósforo até Istambul, onde muniram-se adequadamente de provisões, e selaram entre si um pacto solene cujo conteúdo nunca foi revelado. Costeando o Mahrmara, passaram por Izmit, e logo adiante em Adapazhari decidiram seguir por rio: desceram o largo Sakarya até o calmo lago Saryiar Baraji, donde tomaram abaixo a confluência do Ankara até a bela e agitada cidade que lhe dá nome. Voltaram a viajar por terra pela plana e árida trilha que conduz a Elmadag, eternamente minúscula e vazia, e desceram quase até Kirikkale, a partir de onde cursaram pelas águas fortes do Kizilirmak, ainda animadas que se sentiam àquela altura pelo Negro, até Kayseri. Daí rumaram para Malatya seguindo os ventos que a castigam e, cruzando pela primeira vez o Eufrates, subiram em direção a Elâzig: após passar o Madendag, logo chegaram às pousadas atarracadas de Maden, onde descansaram a tarde e a manhã. Retomando a viagem, logo chegaram a um povoado esparso e esfumaçado chamado Elgani e tomaram novamente o curso das águas, em uma das extremidades ainda mansas do Tigre que, à medida que se aproximava das planícies de Diyarbakir, tornava-se cada vez mais caudaloso. Perto de Raman, onde os viajantes costumam dizer que come-se bem, decidiram acampar por mais tempo antes de cruzarem Cizre, na fronteira, pois alguns estavam com um pouco de febre. Recuperados, não demorou que entrassem em território Persa, e chegaram a Mossul em dois dias: ali regularizaram os documentos diplomáticos, tomaram informações, receberam os equipamentos encomendados e reuniram-se com alguns especialistas locais em culturas mesopotâmicas e caldaicas. A comitiva não chegava a quarenta e cinco pessoas, entre técnicos e criados, e instalaram-se todos em quatro confortáveis embarcações Tigre abaixo. A partir de Al-Kayyara, a paisagem começava a tingir-se do verde babilônico: Al-Fatha, Tikrit, com suas casas altas e pequenas encolmeiadas umas sobre as outras, passaram suaves à costa, como em vitrines frescas de um imenso museu de ciências do homem a céu aberto, e logo chegaram à abundante vegetação da região de Samarra. Finalmente recebidos em Bagdá, proferiram quatro palestras muito ilustradas na Academia, cada qual segundo sua especialidade, visitaram as mesquitas a conversar com anciãos, e, depois de dois dias, desapareceram subitamente de tal maneira que de nenhum deles se teve qualquer notícia - o que quase veio a deflagrar sérios embaraços diplomáticos - até que se soube que foram vistos em Al-Hindija, uma cidadezinha cortada pelo Eufrates a um pouco mais de cem quilômetros ao sul de Bagdá. Descobriu-se que, lá chegando, registraram-se como vindos de uma pesquisa arqueológica em Kabara, e alguns criados da estância onde se hospedaram afirmaram tê-los ouvido discutir violentamente durante a noite que lá passaram. Foram, por fim, encontrados mortos, em abril de 1874, os quatro, em toscos nichos de escavação arqueológica nas cercanias de Al-Hilla, que, improvisados e violentamente revolvidos, assemelhavam-se mais a um local atacado por uma quadrilha de garimpeiros tomados por alguma espécie de febre dos minérios. De fato, fôra o mercúrio que provavelmente contaminara a comida, e jaziam horrivelmente nos buracos: seminus, a pele a rachar-se, com manchas na boca e a as unhas repletas da terra cascalha, cada qual tinha, crispado em uma das mãos, um pequeno objeto que, juntos, perfaziam um curioso conjunto - uma miniatura de bdélio em formato de cabeça de leão, uma caixinha de ônix, uma pepita de ouro de excelente qualidade e um pequeno frasco de vidro fino quebrado, do qual jamais se pôde descobrir o que continha.

[Expedições Desafortunadas, O Livro das - sir Walter Burnsteen (ed.); London, 1897, pp. 67 e 68 ]

(I: 5, 8, 13-19, 23, 31)

16. ...foi quando, assentados num dos bancos duros do pátio, discutíamos sobre as luas cheias e as estações que o rabino Itzhak, ainda jovem na época, veio a dizer-me que, na verdade, o dia começa à tarde, e em seguida é que vem a manhã. Talvez fosse o excesso de estudos que lhe conferisse aquele ar exageradamente vagaroso, artificiosamente circunspecto, com o qual disse-me que ‘a noite' - escolhendo as palavras e devagar, como que dando-me tempo para apreender algo que enfim não percebi - ‘... parte central do dia, é governada pelo menor dos luzeiros’... Fazia-o assim, com cerimônia, usurpando o mistério das construções rebuscadas, pois com isso sabia que eu, com minha infantil credulidade, ficaria alguns instantes desconcertado contemplando a novidade de estar ali numa madrugada de sol ou de, por um primeiro e vertiginoso instante, olhar invertidamente para todos os meus dias até ali, ou ainda mesmo de imaginar que...

[Vida no Gueto - Donald Ray Johnson ; N.Y., ed. Paperground, 1976. p.53 (trad. Anna Lívia Guedes, inéd.)]

Ausência dela

Venham, venham, dedos, dedos, dedos, dedos, dedolhos piscando como uma revoada de borboletas alaranjadas em meio ao pólen, dedolínguas como um bando de escuras lontras brilhantes na água marrom do rio, dedançantes como os negros ao redor da fogueira noturna e essa pequena mariposa que agora morre na luz de minha lâmpada.

Carinho que cavocam nas teclas a procurar onde ela está dentro de minha alma, onde ela se esgueira como uma seda escorregadia por cada vão de meu abandonado mobiliário interno, e todas as minhas câmaras e balcões e alamedas estão sozinhos sem ela – ela, a única vela no centro da sala de baile a desenhar-me sombras serpentinas erguendo-se pelas paredes e fazendo toda minha sóbria arquitetura dançá-la com os braços para cima e olhos fechados... Onde ela está, que com tanta ausência preenche cada fresta da cerâmica de minhas rachaduras e canta um lamento lúgubre através de meus rochedos que o vento da passagem de tantos dias esculpiu? A ausência dela é uma tenda de lona de circo vazia com cães mortos dependurados nas juntas das estacas. Onde agora o riso e as cores? Quisera desenha-la com esses dedos, quisera moldar no ar seu volume de pétala, quisera esmagar vaga-lumes sob minhas unhas para acender com um gesto de cimitarra o sorriso dela no ar denso da noite. Quisera vagar pelo campo sob a lua de braços abertos a pentear com minhas mãos seus cabelos de linho e caminhar sobre ela inteira até desaparecer em seu horizonte.

Venham, venham, dedos, e contem a ela o meu amor maior que minha alma, o langor de meus dias ouvindo em minha pele o sino perpétuo de sua lembrança, e a dolorosa lentidão de minha longa, longa, longa saudade infinita.

Eva

Seu nome é e era Eva,
(Porque creio que pertence muito
Também ao passado)
E seus olhos são de uma doçura triste
Como que de mãe sozinha
Que olha os filhos que crescem
E falam,
E sente saudades de quando choravam,
Das histórias fantásticas
Que nunca seriam compreendidas;
Das cantigas que falavam de bichos,
Lendas e palavras inventadas.

Eva alimenta seus filhos com doces
Feitos, pelas mãos marcadas,
Com colher de pau.

Eva chora escondido
E dá beijo estralado;
Quando perguntam o porquê da peruca
Sobre os cabelos engruvinhados e grisalhos,
Responde com a vergonha acanhada
Das coisas que evita dizer:
“Ai, não... é fêi...”

Eva está no seu quartinho
A banhar as pernas inchadas com ervas que dão por aí,
E a olhar assustada as coisas novas.

Eva vive.

Eva é negra.


– 1988.

A Casa da Colina

Capítulo I

Tio Simão fumava dum tal rolo tão preto que por fim o sobrinho o aconselhou a que fosse deliciar-se com seu pito lá no pequeno telheiro que ficava ao fundo do jardim.

- Está muito bem, Carlos. Fique tranqüilo, Carlos - disse o velhote, placidamente - Que seja onde bem quiseres: o alpendre para mim calha perfeitamente... há de ser até mais agradável.
- Raios me partam - despejou ‘seo’ Estêvão com sua implacável franqueza - se me apercebo como é que vosmecê pode fumar de um tabaco assim tão medonhamente ordinário. Nem pólvora de espingarda, valha-o Deus!...
- Pois olhe que é bem bom, Estêvão - replicou condescendente, o velho - bem frio e molinho...

Todas as manhãs, por conseguinte, lá seguia para o telheiro, após um longo e meticuloso ritual de preparação que incluia, entre uma infinidade de manias delicadas, escovar muitas e demoradas vezes seu chapéu preto que, posto finalmente sobre a cabeça e tendo sua larga aba ajeitada toda à volta pelas falanges medianas dos dedos curvos, anunciava estar pronto para seu solitário deleite. Enquanto fumava, a aba do seu chapelão e a ponta do seu cachimbo eram bem visíveis do outro lado dos travessões da porta do alpendre. O seu ancoradouro - como ele chamava a fumarenta varanda que coparticipava com o gato e a ferramenta do jardim - servia-lhe também como caixa de ressonância e, todas as manhãs, cantarolava com satisfação uma de suas árias favoritas enquanto os círculos cinzentos e azuis do fumo subiam vagarosamente do cachimbo para o ar puro.

Estêvão, na grama clara de sua ignorância, nunca fora capaz de aceitar como alguém culto e sabedor das palavras mais difíceis como tio Simão se acomodara tão calmamente a uma vida de tamanha monotonia: ‘Não fazer nada é pra quem não sabe fazer nada, mesmo, que eu, se soubesse fazer metade das coisas que vosmecê já aprendeu eu é saía das minhas enxadas e ia ser doutor no mundo.’- sentenciava. Mas, secretamente, agradava-lhe vê-lo conversando às tardes de verão com o sobrinho, quando saíam ao pomar e ficavam durante toda a tarde tecendo longas e complicadas teias de argumentos e contra-argumentos nas quais pareciam divertir-se prendendo-se sempre em algum ponto perto da teologia, quando Deus parecia um qualquer assentado em seu banco dos réus, e decidiam-lhe a sorte todos os dias, e nenhum. Ao fim da tarde dissolviam-se todos os labirintos em que se metiam, quando uma chuva fortuita e vigorosa os enxotava de volta à casa do alto, na qual entravam já inevitavelmente ensopados mas risonhos como duas crianças grandes e desajeitadas. Estêvão amava tanto aquele menino que vira sofrer com as tragédias dos patrões, que aceitava mesmo esse pai bastardo e tardio, por vezes mesmo parasita, como o consolo para a longa melancolia de Carlos, que nunca conseguira, sozinho, curar. Nem a liberdade da campina, nem a calma do lago, nem o discurso secreto de suas flores, que tanto o fascinava, puderam despertar Carlos do torpor em que lentamente sucumbira com os anos e a ausência do patrão. Mas seu sorriso, ah!, seu sorriso trazia-o de volta à casa do alto como antes, quando não haviam outras especulações senão roubar uma porção da sobremesa às escondidas da mãe, que corria a dividi-la com Estevão, escondidos no porão. Quase não gostava de doces - deixava o saque praticamente inteiro para o menino, e ficava apenas a olhá-lo devorar os bocados repletos dos cremes gordos que emolduravam-lhe o imenso sorriso, de cuja satisfação contagiante era sempre impossível escapar, e compartilhavam, assim, cada um à sua maneira, daqueles alguns momentos de silenciosa e plena felicidade.

O velho Simão havia muito que viera morar com Carlos e os criados, na época em que a irmã mais velha, Margaret, ainda não havia partido para longe com seu arrogante major estrangeiro. Quando ficaram sós sentiram que sua amizade parecia haver esmorecido um pouco pela falta da saudável cumplicidade que a união de ambos contra um inimigo comum - a demasiadamente ponderada Margaret - provocava a cada um dos incontáveis momentos daquela longa e silenciosa luta das tensões domésticas - escondidas por detrás de gestos minúsculos dos seus mofinos dedos, inflexões sutis do seu macilentamente discreto falar, ligeiros e incômodos movimentos das sobrancelhas finas que arqueavam-se sobre seus olhos pequenos e inexpressivos... O lugar inevitável do bule ao centro geométrico da mesa, os pés molhados ao entrar mesmo pela porta dos criados, as dobraduras das cobertas de algodão branco sobre toda a pesada mobília do escritório, nenhum lugar ou situação dentro daquela casa escapavam a seu olhar doentio e severo. Simão passara a contar definitivamente com a irrestrita adesão de Carlos após o patético incidente dos tamancos de madeira que a tia-avó, ao desiludir-se finalmente com qualquer possibilidade de voltar a sair da cama, quanto menos a calça-los - e mais por senilidade que por capricho, deixara para a tola Margaret. Embora houvesse logo desistido de acomodá-los aos pés pequenos, e sob a velada - mas longe da discrição - reprovação de todos, Margaret insistiu um longo tempo em mantê-los sobre o toucador, como uma relíquia - e só mesmo não os pôs junto ao oratório pois imaginou que a mãe, então, ainda o consideraria uma profunda blasfêmia. Como alinhamento de planetas, ou outro qualquer desses tão maravilhosos quanto raros e improváveis fenômenos que se costuma associar à iminência de catástrofes, aconteceu de, encontrando numa manhã silenciosa e vazia o quarto de Margaret abandonado à luz que o invadia atingindo os tamancos sobre a penteadeira alta, como num momento de graça em que Deus envia um de seus raios de luz divina sobre o cálice no altar, Simão, entre extasiado e descrente, avançou lentamente em direção ao móvel escuro até que tivesse-os nas mãos, em frente ao espelho ovalado que o espaldava; segurando-os quase à altura dos olhos, verificou que não havia sequer uma só aparente sujidade ou poeira, como se nunca tivesse havido necessidade de limpá-los, ou ainda, como se nunca houvessem participado do mundo real - e a súbita percepção de tamanha e absurda devoção lhe causou tais engulhos, quem sabe até mesmo medo de que viesse a sentir-se culpado por atrever-se nesse patético santo-dos-santos, que, num lapso, deixou-os cair ao madeirame largo que forrava o assoalho. No espelho surgiu a pálida e muda imagem de Margaret, que logo fez com seu corpo esquálido eco aos tamancos no chão da câmara. Os pedaços de madeira, mais tarde colados toscamente como um aleijado de guerra a quem reimplantaram um membro, foram acomodados num fundo de gaveta qualquer de onde nunca mais saíram, e não fosse a providente e forte intervenção de Carlos em favor do desastrado tio, Margaret continuaria a destratá-lo por mais alguns maus anos. Aprenderam a rir juntos dos desatinos que as desmedidas da irmã levavam-na a cometer, e faziam de suas maledicências secretas seu credo, sua comunhão, e sua heresia. Ao elegerem como deus inversus a tola Margaret, sabiam que o que representava era não os ideais que queria fazer crer representar, mas a grotesca caricatura que de sua vertiginosa prática resultava.

Estêvão, por sua vez, sempre acreditara que Carlos haveria de dedicar-se à fé, e esperava que sua volta de Uppsala o trouxesse vestido com o traje sacerdotal. ‘Pois se Teologia não é pra fazer padre eu é que não sei mais como é que pode ser de o patrãozinho querer fazer os estudos de construção para não lidar com as obras...’, raciocinava, em sua desamparada frustração. Queria receber do menino um dia a bênção, quando adoecesse; queria também que suas rezas bem pronunciadas casassem suas filhas, e que olhasse severa e paternalmente pelos netos que elas lhe dariam, certo mais que tudo isso que não os veria ainda vivo. Desde muito cedo sentira nele o...

(continua)

Sobre limites

Descobriu que havia um outro velho, até quanto percebera tão caprichoso quanto ele mesmo, que deixava o rádio sintonizado sempre na mesma emissora. Importuná-lo em sua cadeira de rodas por uma boa meia hora a troco de banalidades de quem não sabe o que fazer para prolongar um momento sem pretexto não lhe pareceu suficiente, e passou a frequentá-lo quase que diariamente, buscando cumplicidades e simpatias imaginárias. A verdade é que o descoberto tinha, além de uma insuportável timidez que o constrangia brutalmente a aturar os mais invasivos inconvenientes, uma seqüela de derrame que o impedia de articular sua fala na velocidade mínima suficiente para aproveitar as vírgulas de um interlocutor mais falastrão e menos paciente quando quisesse argumentar qualquer coisa, quem diria para tentar findar o suplício. Conseguia, quando muito, armar os músculos da face numa expressão de incômodo e ansiedade, à qual o inconveniente aborrecedor inevitavelmente respondia com algo tão cínico quanto ‘você está mesmo bem?’ no princípio, e, depois de algum tempo, naturalmente, passava a fingir não perceber mais. Não bastando as longas palestras na calçada, logo o importuno invadiu-lhe também a cozinha sob pretexto de preparar café para ambos, enquanto conversavam; o café, no entanto, era muito forte e doce, e o velho já não mais suportou: retirou a arma de sob o assento da cadeira de rodas, e com quatro tiros no peito e na barriga, matou o pretendente a colega.

Gourmandises

toda vez que se utilizava de fita dental fazia-o às escondidas, desfrutando desse prazer solitário como um reconhecimento secreto e dadivoso de seu corpo a si mesmo, único conaisseur apto a julgar tão particular cultura. esperava em média dois dias durante os quais comia seus pães, macarrões e especialmente carne, inspecionando cuidadosamente a parte posterior dos incisivos, as laterais externas dos molares e o generoso vão do pré-molar inferior direito, cuidando que abrigassem os delicados depósitos da massa clara que ia solidificando-se aos poucos junto à gengiva como um anel de coral. com a língua inspecionava regularmente o progresso da textura e a riqueza da densidade, com os finos e hábeis dedos indicadores promovia os melhores acúmulos e aparava-lhes os excessos, os quais analisava-lhes cuidadosamente a cor, o brilho, todas as fases do sabor e bouquet durante a maturação e mesmo suas resistências ao corte. findo o prazo habitual e julgado o processo concluído, esperava uma longa hora em que pudesse dispor sem preocupações do banheiro e calmamente, como numa celebração ritual, retirava as pequenas coroas dos seus ninhos com a ponta metálica de um cortador de unhas e admirava-lhes primeiramente a firmeza ao toque, em seguida elevava-as num meio caminho em direção à luz sobre o espelho para reconhecer-lhes as particularidades de feição, levando-as então várias vezes junto às narinas para acolher e reconhecer seus aromas antes de finalmente degustá-las ora quebrando-as entre os dentes, ora apenas deixando que se dissolvessem entre a língua e o céu da boca, como numa comunhão. anotava metodicamente os progressos em um caderninho de brochura que escondia dentro do estojo de couro dos instrumentos de manicure e o marido nunca o encontrou.

Thomas e a rosa

Como iogurte. Gosto de mastigá-lo. Já a sensação de ter seu sabor por muito tempo na boca é desagradável. É como se tivesse dormido longamente mas acordado, e de um sono com um sonho tão higiênico e estéril cujo único efeito fosse realmente acordar com a boca meio ressecada e adstringente com o gosto de iogurte suicídio de morango... [pausa dramática] ...dormido longamente mas acordado - qualquer um entende por que a primeira interpretação que qualquer leitor faria desse fragmento, mesmo em seu contexto, seria a de que o interlocutor se refere ao fato de haver dormido longamente mas esse sono haveria sido interrompido pela vigília, embora a correta seja a de que o interlocutor se refere ao fato de haver dormido longamente em estado de vigília, e chama a atenção para essa ressalva através da adversativa. Faz-me lembrar o caso de Thomas, aquela cadela boxer que ficou terrivelmente apática, quase melancólica, depois de haver morrido – abandonou seus hábitos domésticos e animados e ficava apenas parada, triste, como lázaro que o cristo fez retornar da tumba, mesmo após já estar cheirando muito mal. Iogurte, aliás, assim como o roquefort, têm ambos seu grande charme no princípio contraditório (?) que é seu fundamento: o crescimento da vida e sua degenerescência e o crescimento da vida na degenerescênscia e a vida que é degenerescência, rosa, rosa, rosa...

Minha querida

Ela nunca suportou que a chamassem de minha querida. Isso porque quando era pequena o tio e tutor a currava com freqüência, praticamente às vistas da madrasta e da irmã mais velha que, para falsamente a consolarem, assim a chamavam. Sabiam que enquanto durasse a pervertida obsessão pela pequena estariam seguras. Acontece que o apetite do desgraçado simplesmente aumentava, e seus ataques se tornaram com o tempo tão mais freqüentes quanto requintados, e sentiu que a menina, já quase exaurida, não lhe satisfazia como antes. Primeiro foi a outra irmã, depois a velha. Passado pouco tempo, a situação entre os quatro já se encaminhava a um ponto semelhante àquele que o causara até que, por fim, as duas, sentindo-se traídas pela insuficiência da pequena que, julgavam, as conduzira a tanto, juntaram-se e a surraram de tal forma que mais tarde o homem, examinando-a, julgou-a morta e, como a preferisse, não hesitou em degolar a moça e empalar a velha. Abandonou a casa apenas quando o mal-cheiro tornou-se insuportável e nunca mais foi visto. A garota foi encontrada semanas após, em choque e desnutrida, por um casal de vagabundos que a exploraram por alguns anos, até que tivesse condições de fugir.

Tornou-se, com a experiência que tinha, uma das prostitutas mais requisitadas e, como aprendera com os patifes que a encontraram diversas trapaças, não demorou que enriquecesse. Dona por fim, quando envelheceu, de um dos prostíbulos mais luxuosos onde não raro viam-se figuras importantes do mundo financeiro e político, continuava a exercer seu ofício quase que por prazer, e era ainda desejadíssima. Apenas não suportava que a chamassem de minha querida, e, por essa razão, castrou com um punhal fino de cabo de marfim o chefe do gabinete. No dia seguinte foi morta asfixiada com suas caríssimas roupas, que enfiaram-lhe traquéia abaixo, e soube-se que, ainda viva, arrancaram-lhe os olhos, rasgaram-lhe as peles moles do peito a unhadas e perfuraram-lhe o útero com um punhal fino. Fui a seu enterro escondido, mas tinha quase certeza de que todos ali eram como eu, e a maioria chorou. As meninas da casa continuaram o negócio, mas nunca mais voltei, até que soube do incêndio...

Uma visão singular

Viajava acomodado no banco traseiro do utilitário Lincoln verde já não tão escuro que meu avô tradicionalmente cedia para as inevitáveis expedições ao camping que meu pai empreendia, às quais éramos todos irrevogavelmente convocados. Meu irmão mais novo dormia reclinado sobre minhas pernas, e sei que, se porventura reclamasse do amortecimento que tal posição em mim produzia ou se me virasse um pouco de modo a fazê-lo escorregar para o lado, necessariamente ele acordaria, e a culpa por seus choros intermináveis ou suas irreprimíveis regurgitações recairia invariavelmente sobre minha impaciência.

O passatempo com o qual costumava preencher minhas longas vigílias de resignação era o de contemplar a inconstante paisagem que se atirava furiosamente para trás, ora árida com suas árvores retorcidas, ora verdejante e pontilhada por antigas e solitárias cabanas, estábulos ou capelinhas, ora penteada de plantações que coloriam de verdes e texturas sempre distintas as planícies e os pequenos morros. Embalavam a marcha de minha monotonia as melodias perdidas que meus pais cantarolavam sofrivelmente vez ou outra no distante mundo do banco da frente; canções que quando eles mesmos as aprenderam eram já antigas e exalavam todas, quem sabe pela afetação ingênua da letra, quem sabe pela linha do contralto que minha mãe costumava tecer como bordão, uma espécie de lânguida nostalgia que, segundo eles e os outros casais amigos que compartilhavam relativamente de uma mesma época, era em que consistia justamente seu charme.

Assim, com os olhos turvados pelo rubro magenta que embrasava o horizonte em mais esse fim de viagem rumo às inatingíveis areias de camping do Sul, com a testa marcada pelos inúmeros solavancos de encontro ao vidro lateral, as pernas amortecidas e o repertório de meus pais esgotado, foi que repentinamente vi, a uma distância não muito fugidia, bem no meio da campina que ladeávamos, uma imagem que tanto me perturbou os sentidos que não fui sequer capaz de voltar-me para meus pais e chamar-lhes a atenção, interrompendo o súbito silêncio contemplativo no qual pareciam estar absortos ao findar das cantilenas. Era um ser que por muito tempo povoara a eclética galeria de minhas fantasias – meio homem, meio cavalo, dorso nu e musculoso, a correr vigorosamente, como que movido pela força de um vento de fogo e a energia de mil vagas turbulentas em meio a uma tempestade. Seus cabelos e barbas eram tão exatamente encaracolados quanto assim ditara a imaginação aos ilustradores dos antigos volumes que costumavam me entreter, quando não repousavam na parte inferior da estante do escritório de meu pai. Ele corria paralelamente ao carro, como se o acompanhasse sem muito esforço, quase que por delicadeza e, num dado momento, muito curto mas tão certo quanto estar eu hoje a escrever este fantástico e ingênuo relato, voltou-se bruscamente em nossa direção e, por um instante, sei que ele olhou diretamente em meus olhos.

(continua...)

Cantava, ela.

Cantava, ela. Linda, que era, cantava, ainda. Um doce, com seus olhinhos inchados a lembrar seu sexo, sua dancinha ingênua sob o chuveiro. Seu corpo todo sorria a fazer covinhas no final do escorregador brilhante de suas costas, pequenos cálices de minhas poucas lágrimas que ela, afundada no edredon, nunca viu.

Gostava de pompons atrás do tornozelo de suas soquetes coloridas sem as quais nunca dormia e com as quais nunca acordava. Tinha o hálito mais doce do mundo que assoprava-o através de seus labiozinhos pequenos. Demorava-me horas, creio, a vê-la antes que o sono me convencesse a confiá-la à manhã seguinte. Acordava-me sempre prematuramente, a cantarolar do meu lado olhando pro teto e brincando com as mãos. Linda, que era, cantava, ainda – mal, contudo, como nunca minha dolorosa vergonha conseguiria confessar.

A franja e o ódio

A franja emprestava-lhe um ar desconcertantemente infantil sobre aquela barba grisalha: parecia um Ray Coniff gordo inimaginavelmente esbravejante sobre todos da repartição. A indefectível camiseta branca a ressaltar o azul claro da camisa engomada que a recobria todos os dias parecia um uniforme de super-herói pateticamente às avessas, a quem todos odiavam. Não havia quem não desejasse como a morte que se lhe abrissem os fundos da calça diante de todos, que o garrafão de água do bebedouro desabasse sobre sua engravatada barriga, que algum anônimo mais corajoso adicionasse a seu interminável café algum poderoso laxante. Quando descobriram-lhe a mulher paralítica as opiniões se dividiram: houve aqueles que, por isso o redimiram; foram, contudo, poucos, pois todos os demais passamos a odiá-lo ainda mais por agora essa tal, digamos assim, bravata moral – tão mais pretenciosa quanto mais secreta. O mal-estar que tal cisma silencioso provocou em pouco tempo recuperou para o mesmo lado os subitamente convertidos, tão cedo as mesquinharias cotidianas de seus vincos impecáveis e seus pares de canetas no bolso da camisa voltaram a mal-cheirar sua colônia de pinho pelo escritório.

Poucos anos depois, assim que se soube que houvera engravidado a secretária novata, o levamos para uma cervejada no segundo andar da sinuca onde o recebemos como a um heróico zagueiro.

Gone

You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?


- E. A. Poe


Ajuntava-os à medida que os encontrava, e os ia deixando assim, pelo apartamento, como montículos de cinza não consumida de um incêndio sem chamas; um lembrete de compras por fazer, um bilhete antigo de extrato da conta bancária, um brinco, formavam todos pequenos amontoados lembrando ex-votos em uma enorme cripta cinzenta abandonada, ou mesmo jamais habitada por defunto nenhum. Apenas ele, que sempre colhera frios os últimos beijos de todos os lábios que conhecera, enfeixava ali os restolhos dos ramalhetes de ventos esparsos, de sopros que, extinguindo-se, ainda insistiam em varrer de leve a superfície das paredes e dos móveis, como que acariciando-os com as unhas macias: o perfume glacial e pleno do sono começava a se perceber ainda longínquo, e sabia que até o fim da semana o ar estaria já completamente denso.

Ajoelhado, olhava os movimentos teatrais de suas mãos, segurando apenas sombras de grãos de areia cujo dourado se ia rapidamente apagando ao escorregarem por entre os dedos em direção à profundeza abaixo do chão, e deixava-se invadir lentamente pela ressaca aveludada das lágrimas que espumavam acima do vórtice ágil e escuro do estômago, para enfim destilarem-se cristalinamente para fora dos olhos. Permanecia sempre, nesse momento, em absoluto silêncio, sentindo seu corpo revolver-se em soluços vigorosos que por vezes chegavam a comprimir-lhe a traquéia com tal ímpeto que a asfixia momentânea provocava uma respiração forçosa e violenta. Após sentir que as lágrimas lhe houvessem percorrido toda a face, recolhia-as ao fim do maxilar e lavava meticulosamente com elas a extensão de ambas as mãos, acariciando-as com o líquido escasso, e beijava-as, como que sorvendo o quase nada que nelas restava; por fim, passava as mãos simetricamente pelo rosto, começando pelo centro e avançando por sobre os cabelos até a nuca, de onde retornavam, pelas laterais do pescoço, à frente, chegando juntas primeiramente as palmas, por fim os dedos todos, perfazendo um gesto de prece que fazia voltar aos lábios, para finalmente repousá-las sobre as coxas unidas.

Sempre choraria quando chegasse esse momento, não pela mesma comoção que a todos os outros assistia, mas porque o sabia necessário para que não esquecesse novamente como fazê-lo. Os anos que passara a seco demonstraram que ainda não tinha maturidade para abrir mão disso, e, assim, decidira-se por dedicar-se ao cultivo, econômico e consciente, quase ritualístico, desses instantes que sabia que, de tempos em tempos, se fariam repetir diante de si - uma mudança aqui na voz desistente, outra ali na entonação melancólica, na queda doce, acolá nos olhos anestesiados e vagarosos, na boca marejada: sabia, passo a passo, todos os sinais indicadores do fim do drama cujo desfecho decidira, assim, pontuar com seu pranto. As primeiras vezes lhe trouxeram de fato a vertigem adstringente à boca, quando acreditava que, impotente para enlouquecer em fúria, atirando-se aos murros e chutes às paredes, apenas deixar-se-ia desfalecer em direção ao chão, o imenso e plano colo da mãe fria e inexistente que sempre lhe abrigava a angústia aconchegando-o ao seio de sua dureza. Encaracolado no solo, abraçava então os joelhos de encontro ao peito, e, espremendo um clepsídrico gotejar de pequenas poças no repouso lateral de seu rosto, aguardava a lenta chegada dos minúsculos vermes das dormências que brotavam do chão a invadir-lhe aos poucos as extremidades do corpo que se ia cobrindo numa parte ou outra com a manta estreita das cãimbras. A parte realmente terrível era saber que, nessa luta particular, privada de qualquer movimento, em que era o único agressor e vítima, sabia-se sempre inteiro - sem troféus de mutilações, restava-lhe entregar-se a apenas imaginar as delgadas rendas das luvas de sangue a vestir-lhe sedosamente os nós proeminentes da mão cerrada, que untava com a saliva salgada pelas lágrimas, ou as marcas invisíveis de uma violência perita e avassaladora, daquela invariável tortura que fazia com que os contáveis minutos comprimissem, grau a grau, toda a extensão das laterais de seu crânio.

A fadiga trouxe-lhe pontualmente o sono, e, enquanto sentia as pálpebras desistirem, lembrou-se de que foi logo por ocasião da sexta vez, desde que resolvera voltar a sensibilizar-se com o fato, que não dormiu no mesmo lugar em que recebera a derradeira despedida, e apenas circunstancialmente, uma vez que se dera sobre os trilhos daquele metrô, e aconteceu mesmo que, depois disso, não houvesse achado que isso fosse mais necessário. Aquele dia de fato fora, por alguma coisa que nunca discernira bem, diferente: já havia talvez alguns bons anos que não lhe acometia, e de tal maneira, aquela mesma sensação de estar vivendo na silenciosa lentidão do lado de fora da vitrine na qual o mundo, como uma espécie de presépio miraculoso, gigantesco e brutal em exposição, parecia continuar a mover todas as suas inúmeras, invisível e misteriosamente interligadas partes. Após a rápida imagem da tremulação do suéter rosado de Bianca, aqui e ali aspergido com o negro voluntarioso de sua maquiagem que escorrera-lhe pelo rosto, lembrava-se apenas de haver levantado os joelhos de sua calça bezuntados pela camada acamurçada de poeira que a graxa fazia acumular-se sobre o chão de concreto, amparado pelos policiais que acorreram à sombra surgidos da luz de detrás, e que, tão logo repetira quase que automaticamente a rotina decorada dos depoimentos, saira para o frio das ruas do centro que, àquela hora, ainda formigava de pernas agitadas, e trazia o perfume de mil outros e mesmos nomes a desfilar ao longo de seu descaminho. E nomes, e nomes, e nomes, e nomes... No início era mais especialmente difícil quando o nome era mais comum, pois deparava-se desavisadamente com a lembrança evocada por essa capa que agora vestia outra pessoa, e no começo não sabia se fugia da constragedora estranheza ou se procurava dentro dos olhos da desconhecida a sombra escondida daquela cujos ecos rebatiam-se nos corredores longos de sua memória. Logo os nomes deixaram de ser nomes, e passaram a ser como a cor dos cabelos, o formato das unhas, o calor do corpo, que reconheceria às vezes em uma ou em outra como senhas que a natureza deixava para lembrá-lo da ineludável irmandade de todos a todos e a tudo. Talvez por essa razão evitara sempre se acostumar a tratar quem quer que fosse por quaisquer apelidos particulares; usava apenas os nomes, contudo, com tal respeito e ternura que isso chegou a firmar-se para todos que o conheciam como uma característica senão charmosa de seu trato. Algumas poucas vezes chegara a comprar alguns filhotes de animais domésticos, sempre diferentes, ou mesmo quaisquer objetos de adorno que figurassem alguma espécie de ser animado, aos quais secretamente chamava pelo nome do amigo ou de quem então perdera; não suportara, a princípio, mais que alguns anos aquelas presenças que, em sua transmutação, testificavam apenas o caráter irreversível daquelas outras ausências – contudo, ao perceber que o que de fato, e impassivelmente, testificavam, era, sim, o caráter irreversível de todos os fatos particulares passados, esvaziou-os de toda dor ou exigência, e toda aquela rica multidão lentamente voltou a povoar suas mobílias, sendo que alguns acompanhavam-no mesmo quando mudava-se.

Haviam-se passado quatro horas e vinte e três minutos quando finalmente adormeceu.

There were more things

Calçou as luvas lentamente, na neblina. Caminhava com os pensamentos, a passos vagarosos e largos, como um autômato preguiçoso. O frio e a umidade das três horas invadiam-lhe as pálpebras, imprimindo aquela sensação angustiante de uma ácida secura. Retirou do bolso interno da sobrecasaca um pequeno e achatado frasco metálico com fino acabamento em couro e prata do qual, havendo desatarrachado a delicada e brilhante tampa com um gesto brusco e afetado, sorveu dois goles miúdos mas vigorosos, como beijos tomados à força.

Pôs-se finalmente em movimento, deixando que uma passada se sucedesse à outra num letárgico moto perpetuo, compassado e vazio. Piscava aos poucos, sem qualquer pressa, como que a brincar com cortinados de cobre. O pesado sino do convento no cume da ladeira tortuosa dobrava sua melancólica monodia chamando os monges para a liturgia de Matinas, e ele esboçou um movimento nos lábios lembrando o cacoete dominical dos responsórios em latim que nunca entendera. ...'Filho de um avarento general das cavalariças no auge de sua decadência e uma rainha louca, velha e ciumenta – ', costumava dizer, 'o Estado Imperial Britânico...', pausava, '...e a Santa Igreja Apostólica e Católica Romana'. Et unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam: o bronze do dogma reboava a onipotência dos simulacros em suas memórias.

Estancou a arrastada marcha, como que a tentar conter a hemorragia de demônios que dançavam em jorro sob suas têmporas. Sentiu uma brisa gélida que, invadindo as frestas da gola, acariciava-lhe morbidamente a nuca e, quase que num reflexo nervoso, levou novamente a mão ao bolso interno. Subitamente, travou a respiração e segurou o movimento, pondo-se a olhar devagar o frasco trabalhado entre os dedos, expelindo aos poucos o ar represado. Eram, na verdade, dois tipos nobres de couro bastante próximos, no entanto de duas texturas bastante distintas a um olhar um pouco mais educado em tais apreciações: as quadriculações minúsculas que ligavam os inúmeros poros em caóticos mosaicos monocromáticos eram onde, pela profundidade dos sulcos ou suavidade das linhas, assinalava-se as diferenças de origem, idade e até mesmo tipo de criação. O aroma do couro tratado mesclava-se ao odor forte da bebida e a restos de perfume que a roupa ainda guardava. Lembrou-se de Lygia. Levantou ligeiramente os olhos e quis espremê-los numa lágrima improvável, numa única e miserável gota salgada e morna de, quem sabe, dois pences. Já não chorava mais desde menino, e realmente não conseguia crer serem tantos os momentos que o justificassem; um homem deveria dar o lugar de suas nostalgias a convicções. Noite de St. Valentin, caminhava sozinho e ria-se do que há de patético nos amores alheios. Ria de um riso amargo, preso nas mandíbulas como em um javali enforcado e esquecido à beira do caminho por ser já velho, quem sabe um pouco doente, e não compensar o esforço da carregadura.

A velha ponte de King’s Road... Sempre com aquele ar enevoado, mesmo nos dias de sol pleno, graças aos escultóricos rendados góticos que lhe valiam as atenções de todos os passantes, mesmo aqueles que cresceram à sua sombra...

Parou novamente, dessa vez com calma, e sacudiu de leve as pontas dos pés, olhando a poeira cascalha cair aos poucos dos vãos miúdos dos recortes do bico do sapato, indo parar no delicado friso da entresola ou esfarelando devagar no chão da calçada centenária. Ouviu um apito rouco e triste lamentar-se longe, provavelmente um daqueles pesados rebocadores voltando para as docas, impregnado pelo denso ar marítimo. Mesmo à distância, sentia-se às vezes ainda inspirando desse mesmo e salgado ar, que entrava com esforço pelos pulmões cansados, carregando consigo o mar inteiro, e todo o seu tédio, e toda a sua saudade...

Logo começaria a clarear, e então já não mais...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

O calor e o tempo

Sinto meus pés inchados, as solas comprimidas como se cinco de mim as tivessem pisado durante todo o dia. Deve ser o calor. As muitas horas em pé e o calor. Não estou a tal ponto velho nem sou bailarina para andar a reclamar dos pés, mas assustei-me quando da porta da casa de meu amigo saiu um quem irreconhecivelmente manco que culpava os joelhos. É a gota atacando, eu disse. Ao menos nisso, meu caro, você pode se igualar aos reis; vamos logo à procura de alguns passarinhos. E demos uma risada amarela de anos de café. Podiam-se-nos embranquecer os dentes e não os cabelos. Ao menos algum charme dizem elas que isso tem – mas também o dizem da calvície, o que prova de vez a completa ausência de confiabilidade desses juízos no mínimo irrestritamente complacentes. Mas o que seria da vida sem a generosidade? Abro a porta para ele, que expira um longo ah ao descarregar-se no sofá-da-sala que se tornou o assento de passageiro do meu carro, ali o mais moço de três senhorinhos. E vamos os três rangendo e sacolejando pelas ruas ainda úmidas de chuva, comprar chocolates no supermercado. Contramãos, vagas proibidas, saímos os dois deficientes do carro. Das alamedas de gôndolas, passeamos apenas pelas enfeitadas com os arcos coloridos e brilhantes das embalagens, duas crianças com o tardio poder de finalmente alcançar qualquer coisa apenas com o esticar do braço. Rio quando pela esteira do caixa rolam apenas dois chocolates e um pote de sorvete – quantos anos até termos essa liberdade generosa conosco mesmo. Comemos e sorrimos: com isso amarelamos hoje talvez um pouco mais os dentes, porém certamente também alguns fios de cabelo tiveram seu embranquecimento adiado. Colocamos os pés para cima, refestelados nas poltronas da salinha de tevê: faz bem para desinchar os pés, dizem. Dizem tanta coisa. E ouvimos.