quarta-feira, 7 de abril de 2010

Para viver o cotidiano

7. Tomei hoje de uma água que goteja de uma fonte escondida num pico quase inacessível de uma montanha gelada do Tibet. Não tinha mais do que um copo pequeno; cada gota, preciosa. Tinha gosto de séculos escondidos, de silêncio e de água.

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8. Em uma outra montanha, essa na Suíça, há uma pequena caverna interna a meio termo entre o topo e o sopé, onde um camponês desenvolveu um curioso hábito: colhe cuidadosamente os morangos silvestres no tempo exato de maturação, quando já começam a se tornar frágeis de tanta doçura, e deposita-os, às braçadas, nas pequenas poças naturais que se formam do degelo da caverninha. Ficam ali marinando nessa água tão gelada uma paisagem toda vermelha de frutos que, com a ação do tempo e os depósitos de cristal que sobre eles se precipitam, escorrem num espesso fio carmim pela rocha a que, metros abaixo, mais tarde, leva o camponês a canequinha de biscuit de sua neta para enchê-la de um doce segredo.

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12. Ontem a água inesquecível que tomei foi o último gole do cantil de um comandante romano ao final da campanha na Germânia, ao amanhecer. Do alto da sela, estendeu-me o cantil e sorriu. Tinha gosto de zimbro, couro e terra escura. A cada gole, um golpe de gládio, uma colina.

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24. Vá, menino, dance com teus pés pequenos e delicados sobre essas uvinhas no lagar gelado. De cada bago dourado, ardendo de doçura, seja assim extraído o sumo mais primeiro, mal as finas cascas se machuquem, o primeiro e mais sutil néctar, pela leveza com que os pisas. Escorra essa seiva libatória por condutos engenhosamente esculpidos no gelo trazido das montanhas, lentamente, vertendo-se em minha taça, e eu dela cheia beba, e sacie minha sede de tanto prazer e de tanta vida.

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31. Em um jardim nos fundos de uma centenária propriedade japonesa há uma fonte de pedra, sob as cerejeiras. Mal se vê a bacia quadrada de água, coberta que fica com as folhas das árvores e dos arbustos de jasmim. Não há templo nenhum que a vele, nem desenhos precisos que a recortem: a natureza parece placidamente recobrir a superfície da água fresca e perfumada que, levando-se à boca com uma pequena vasilha de cerâmica rústica, equivale a uma prece silenciosa que abençoa o peito com seu frescor.

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63. Já havia mais de um dia que não tinha sinal de mais nenhum inimigo; sentia-se tão fatigado que sequer sabia se já havia dormido ou não – restava apenas continuar caminhando para longe, o quão mais longe fosse. A armadura de couro engrossada por pedaços de crosta de lama acima e uma malha de sangue abaixo pendia do corpo como uma ferida. Era o último etrusco de sua dizimada tribo – viu pendendo num galho fino um damasco maduro tremulando com a brisa do vale: tomou-o em sua mão sentindo a maciez que se lhe adivinhava a doce suculência, e mordeu-o.

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