segunda-feira, 6 de julho de 2009

O meio-dia de uma musa

Como uma maresia morna de mel. Sentia-se inchada de vida transbordante: seu corpo ondejava pleno da maré de lua cheia no seu ventre, em cuja praia coalhava uma imensidão de minúsculos caranguejos mortos, ninhadas de ovas de peixes aspergidas em arco-iris, rendas de algas balançando adeuses, borbulhas secretas dos respiros de areia movediça, destroços de carrancas de mastros naufragados e a memória do canto profundo de sereias de si mesma.

A memória era de antes das palavras que pudesse ter para dizê-lo: até tardiamente ainda aninhada no seio de dona Iara, o cheiro viciante do leite na gordura do suor da pele num doce contraponto com as notas suaves da lavandinha com que a mãe sempre saía do banho, vinha vez ou outra Seu Dondim enciumar “mas não está grande demais essa daí pra ainda isso, não?” com um sorriso que deslizava sua mão de homem pelo braço moreno com que ela me segurava. E a beijava, fazendo de um carinho com a palma da mão toda em meu rosto um pudor de almíscar para meus olhos – sabendo o ruído líquido da conversa dos lábios dos dois, sugava-a ainda com mais força, toda uma teologia da carne ali resumida naquela efêmera trindade. Agarrada às costelas de sua cintura, quisera engolir não apenas o seio nem todo o corpo de sua mãe, mas também as mãos e os beijos de seu pai, e o universo todo dentro de seus olhos fechados, de onde nebulosas faiscavam vaga-lumes multicores, e do rubor cálido de suas bochechas reinventava mil cosmos rodopiantes cujos mapas nunca escritos eram danças e sinfonias inacabadas.

Povoaram seu secreto harém de pelúcia amantes inesquecíveis cujo olhar cúmplice de botão de aviamento ainda parecia dar na memória das noites insones de terça-feira a piscadela jamais dada. “Ponha uma roupa, menina, que aí vem gente.” Quisera passear sua vitalidade trotejante de pônei pela sala de visitas, rodar estrelinhas de ginástica, saltos-mortais nas almofadas de veludo do sofá. Não podia imaginar senão que fosse esse da vida o maior segredo e o maior acordo, que todos – sem saber por que – apenas silenciavam sobre o que não concebia ser diferente para alguém que respira.

Vieram as mortes das vidas, as mortes para mais vidas, e seu corpo mudou de voz: sorria agora em gotas densas e de um perfume entorpecedor - tinha certeza mesmo de que chegava a fisicamente tocar quem quer que fosse com a aura quente de odor que, como um halo, emanava por todo perímetro de sua pele. Seu quarto, à noite, se transformava no planeta Auleolis, com seus dois sóis vermelhos noturnos, e sua densa atmosfera de um ar cor de opala, caramelo e baunilha. Feria-se de si, de ânsia de tanta vida. Como a fenda na árvore, cultivava sua colméia e era ela mesma sua própria abelha rainha, de barriga para cima no lençol branco pequeno demais para sua inquietação que inchava seu ventre e endemoninhava suas pernas. Com o desespero da fome desajeitada dos filhotes da ursa, grunhia de rosto afundado na maciez escura do travesseiro, escavando por entre a armadinha de suas coxas. A cereja inalcalçável por entre os arbustos, a ubiqüidade do vôo da libélula, o rumorejar do rio por entre as pedras, o arfar dos cavalos jovens, a longa cabeleira da relva a se estender para além da floresta por toda planície ensolarada. Logo viria o entardecer.

E flautas e danças trouxeram a ela seu fauno, o que sua juventude merecia: possesso de vigor, velho, sábio e animalesco; fendeu-a como o mais branco mármore nas mãos do mais apaixonado escultor. Fez-se toda sua lisura sob seus dedos, poliu com sua saliva cada filigrana da poesia firme de seus poros, fe-la território conquistado de todos seus impérios, e assentaram-se ambos no trono de sua mútua e delirante diarquia. Era ele quem vertia sobre sua fonte cântaros e cântaros de libações diárias, irrigação da fertilidade da terra do reino, perfuração de poços para sua sede inesgotável.

Foi-se logo ao longe, e restou ela sozinha. Reclamaram tão logo sua saudade seus mananciais, lacrimejando pelas coxas abaixo até mesmo quando andava à rua. Voltaram as atmosferas quentes de Auleolis a preencher as noites de seu quarto, cogitou mil motins que pudessem estar acometendo suas vísceras; consultou-se, por fim, com as colegas de faculdade quem fosse que assim tanto pudesse sofrer da falta, e suspeitaram doença. Foi preciso exames complicados e o médico com as mãos postas sobre a mesa com os dedos entrecruzados, para lhe dizer: “não, minha filha, não há nada de errado com você. É só o caso excepcional do número maior de glândulas que faz com que você tenha tanta secreção assim. Provavelmente terá mesmo que aprender a conviver com isso ao longo da vida...”.

A calçada saltitava ninfas. Não via a hora de dizer a ele. Ela toda plena de vida. Mesmo na rua, foi a mão por dentro do cós da calça buscar seu fruto, sua dádiva: levou os dedos de volta ao rosto e inspirou de olhos fechados a névoa de auréola que os umedecia, sons de trompas e música das esferas, toda a eloqüência de sua feminilidade incontinente. Dourados oceânicos turvavam sua vista, um som doce e profundo era o coral de toda a natureza à sua volta, muros de seixos, pracinhas com seus cachorros, chão de folhas mortas de palmeira, areia sob a sola das sandálias. Toda paisagem existia saindo dela, como uma maresia morna de mel.

sábado, 21 de março de 2009

Ah, mas não queria. Não queria mesmo. Podia ser o fim do mundo, que não estava nem aí. A última coisa do mundo que precisava ouvir àquela hora era a voz pedinte de Rita. Só uma coisinha, só uma coisinha que se transformava numa tarefa interminável que lhe tomava a tarde toda e logo o dia já escurecia e a sensação de não ter feito nada senão atendê-la em suas coisinhas e coisinhas e a puta que o pariu. Puta merda. Saiu e bateu a porta, como se quanto mais forte batesse menos o telefone tocasse atrás de si. Passou um caminhão de transporte explicando com o desenho na caçamba de alumínio a sua vida: era ele como aquela bolinha orbitando à volta de um núcleo, rodando, rodando elipticamente em torno dela, uma vertigem míope e enlouquecida no carrossel inescapável da gravidade de suas inesgotáveis demandas. Pensou logo que esse era um modelo muito teórico, esquemático, condescendente. Talvez sua vida fosse mais realisticamente explicada de acordo com as teorias mais avançadas das partículas elementares: na verdade ele não estava aqui nem ali, à volta dela, mas em qualquer lugar indefinido, perdido em não mais que apenas uma nuvem de probabilidade à sua volta, sua vida um postulado da incerteza como única lei.

Entrou no café, fez-se desinteressado a ler o cardápio para mandar embora a garçonete gordinha que sempre o atendia mal, e, assim que passou por ele a menorzinha, nova ainda na casa, fez-lhe psiu e pediu os cafés: um curto e um canelinha. Ainda podia sentir no couro gasto do sofá quadrado a lembrança incomodativa do cheiro de Anete com seu cigarro pretensioso e seus sonhos de um existencialismo glamuroso que lhe dava engulhos. A cada pausa que assoprava com sua fumaça pelo ar minúsculo sob a arandela, uma vontade de mandá-la calar a boca, esmurrar, levantar-se e sair para nunca mais voltar até que a urgência de uma transa certeira o convencesse a passar por todo esse suplício novamente. Vida merda, essa, em que existe Chico Buarque. Era ainda o cacoete da gentileza aprendida protestantemente na infância que o fazia perguntar sempre “Em que você está pensando?”, como seguimento compulsório aos seus longos silêncios retóricos, que os fazia durar ainda mais alguns insuportáveis instantes antes de finalmente inaugurar a enxurrada de merdas que começavam sempre invariavelmente com um odiosamente promissor “sei lá...”. Sei lá e soubesse lá mesmo alguma coisa, ao invés de abrir com isso a porteira para a vara nojenta de porcos que se precipitavam pelo barranco abaixo da ignorância confusa de sua falação, como se montado no pescoço de cada uma de suas palavras estivesse um demônio oportunista que as propelisse para o abismo que se tornara uma espécie de palco e segundo lar para ela: lá no escuro amplo de sua perdição sabia desempenhar aquele papel nojento da auto-comiseração como prelúdio para o sexo. Fodia-lhe de raiva, como se a cada enfiada sua a estivesse bombeando para fora do poço em que se afundava até que ela, trazida de volta à superfície, pudesse vislumbrar ao gozar em seus braços o ar fresco da vida cotidiana e verdadeira daqui de cima – para, em seguida, saciado, soltar de uma vez a corda gasta com que a puxara, devolvendo-a numa queda mais rápida e cega ao fundo que lhe era familiar: uma desculpa qualquer, e o dinheiro para o táxi. Foda-se; se quer a miséria da alma, não seja eu a te negar alimento. Por que? Sei lá e o inferno que converse com o inferno.

Ou isso ou o sei-lá mudo e sincero e por isso não menos angustiante de Joana. O “lá” onde ela respondia saber era realmente um não-lugar. Fodê-la era portanto uma navegação utópica, uma exploração adentro do macio mar de nada mais quente e vazio imaginável, sobre o qual um bando de gaivotas enevoava o céu com um gorjeio tão branco e silencioso como seus insondáveis pensamentos. E foi ao comer uma salada de terça-feira que passou a língua lentamente pelas fibras macias e amanteigadas do coração de um talo de palmito: qual era exatamente a diferença entre comer Joana e um palmito, um travesseiro firme, um combinado de sashimis de salmão, o estofamento macio do carro do avô? Sei lá, e o silêncio das ondas de Joana, um horizonte e abismo.