quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Body & Soul

Minha verve jazzística adveio justamente de minha formação batista. Meu pai foi pastor sob essa denominação do protestantismo americano (Junta de Richmond, TX) durante 40 anos... Sim, imagine uma infância inteira sendo anfitrião em nossa casa de missionários texanos rosados em seus ternos azul-claro com chapelões brancos e lacinho de couro preto à guisa de gravata e que insistiam em pronunciar meu nome como Ornénei com o R mais retroflexo do que o do mais orgulhoso ponte-pretano.

A hinódia protestante deve muito à música vitoriana que, temperada pelo puritanismo redneck, perfazem um blend tão entorpecente quanto o bourbon que rega as noites de enforcamentos e cruzes em chamas. Não sei se foi o amor que tenho à minha mãe-preta (Dona Evinha, hoje com 96 anos), ou os anos todos de castração estetizada com harmonias e entoações sugestivas - até mesmo o pitch apropriado de vibrato; o fato é que em minha adolescência descobri no jazz, em resposta ao imenso 'NÃO' à vida da carne e 'do mundo' cantado pela música branca sulista protestante, um poderoso 'SIM' ao corpo e à vida mundana em todas as suas maravilhosas e terríveis instâncias. O jazz não dá voz apenas à ternura lasciva, à deliciosa sacanagem, mas também à dor da traição, do abandono, da saudade. 'A cigarette that bears a lipstick's traces' e todas essas foolish things que compõem o mundo dos sentimentos silenciados pela moral religiosa...

É claro que não pretendo reduzir o jazz a apenas esse aspecto, uma vez que o jazz também bebeu do soul e manteve ao longo das décadas essa espécie de promiscuidade com a música gospel - lembrando que a liturgia negra (sobretudo a batista) sempre teve um caráter muito particular, com seus coros e bandas repetindo até o êxtase os refrões sobre os quais o pregador improvisava, bem à maneira do espírito tribal que atravessou o atlântico nos porões dos navios. Uma forma de culto certamente muito diferente do protestantismo branco - em lugar da contida e asséptica intelectualização da fé, em lugar da sublimação dos ritmos do corpo, nos ritos negros os cantos, danças, palmas e êxtase eram os veículos de expressão da alma.

A própria palavra 'jazz' marca isso em suas diversas etimologias. 'Jazz' significa primeiramente a habilidade ou talento sexual. Como as moças negras que, olhando o jeito de olhar e andar de um rapaz que se aproxima, diriam "hmm... he has some jazz, doesn't he?" ou dos rapazes negros que observam sorrindo uma moça subir a escada: "oh, she has that jazz, man...". Mesmo em português usamos outras expressões pra isso e que vêm do mundo do jazz: 'fulano tem um swing...' ou 'fulano tem o groove...' ou 'fulana tem uma pegada...'. 'Jazz' significa também o barulho que se faz ao fazer sexo. Como na mesa de café da manhã da pensão negra, a velha ranzinza reclamaria da indiscrição do quarto ao lado: 'Goddamn, I've heard that jazz all nite long... and I don't have to listen to this...'. Por fim, 'jazz' significa o próprio ato sexual em si. Como o malandrão pimp que sorri um milhão de dentes para a mocinha e diz 'let's jazzzzz, babe...'.

Não é à toa que a música que essa palavra designa é a que floresceu no Red Light District de New Orleans, e que proliferou nos Joints no meio dos matinhos pelo país, e depois nos clubes 'adultos'. A linguagem foi se moldando conforme preferenciais para o sexo: recebia as melhores gorjetas o pianista que, com sua música, mais eficientemente induzisse na dança da garota os movimentos que mais excitassem o cliente. Quem não tem consciência desse profundo comprometimento do jazz com a visceralidade dos sentimentos em sua expressão mais rough, jamais poderia entender a voz de uma Billie Holiday, por exemplo, nem as piscadinhas que os músicos de jazz dão enquanto tocam. Também não é por acaso que o humor do músico de jazz é muitas vezes até tão grosseiramente 'besteirento', nem que as piadas quase sempre envolvem trocadilhos e duplos-sentidos. Muitas vezes percebe-se que um músico 'tem swing' ou não muito antes de ouvi-lo, apenas pela maneira como chega caminhando, por seus gestos ou pela maneira como conversa.

O espírito do 'jazzman' é o do homem 'do mundo', do ponto de vista do protestantismo puritano, sulista e branco - mas o quanto o 'jazzman' sabe disso, se apropria disso, questiona sua origem e dá a volta nela não poderia ter tido melhor expressão, com a verve e elegância que lhes eram características, na 'It Ain't Necessarily So', de Gershwin, praticamente um sermão às avessas, em que o malandrão Sportin' Life ironiza a imensa improbabilidade das histórias da bíblia.


It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
De things dat yo' liable
To read in de Bible
It ain't necessarily so

Li'l David was small but oh my
Li'l David was small but oh my
He fought big Goliath
Who lay down and dieth
Li'l David was small but oh my

Oh Jonah he lived in de whale
Oh Jonah he lived in de whale
For he made his home
In dat fish's abdomen
Oh Jonah he lived in de whale

Li'l Moses was found in a stream
Li'l Moses was found in a stream
He floated on water
'Til ole Pharaoh's daughter
She fished him she says from that stream

It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
Dey tell all you chillun
De debble's a villain
But 'taint necessarily so

To get into Hebben
Don't snap for a sebben
Live clean, don' have no fault
Oh I takes de gospel
Whenever it's pos'ble
But wid a grain of salt

Methus'lah lived nine hundred years
Methus'lah lived nine hundred years
But who calls dat livin'
When no gal'll give in
To no man what's nine hundred years

I'm preachin' dis sermon to show
It ain't nessa, ain't nessa
Ain't nessa, aint' nessa
It ain't necessarily so