
Entrou no café, fez-se desinteressado a ler o cardápio para mandar embora a garçonete gordinha que sempre o atendia mal, e, assim que passou por ele a menorzinha, nova ainda na casa, fez-lhe psiu e pediu os cafés: um curto e um canelinha. Ainda podia sentir no couro gasto do sofá quadrado a lembrança incomodativa do cheiro de Anete com seu cigarro pretensioso e seus sonhos de um existencialismo glamuroso que lhe dava engulhos. A cada pausa que assoprava com sua fumaça pelo ar minúsculo sob a arandela, uma vontade de mandá-la calar a boca, esmurrar, levantar-se e sair para nunca mais voltar até que a urgência de uma transa certeira o convencesse a passar por todo esse suplício novamente. Vida merda, essa, em que existe Chico Buarque. Era ainda o cacoete da gentileza aprendida protestantemente na infância que o fazia perguntar sempre “Em que você está pensando?”, como seguimento compulsório aos seus longos silêncios retóricos, que os fazia durar ainda mais alguns insuportáveis instantes antes de finalmente inaugurar a enxurrada de merdas que começavam sempre invariavelmente com um odiosamente promissor “sei lá...”. Sei lá e soubesse lá mesmo alguma coisa, ao invés de abrir com isso a porteira para a vara nojenta de porcos que se precipitavam pelo barranco abaixo da ignorância confusa de sua falação, como se montado no pescoço de cada uma de suas palavras estivesse um demônio oportunista que as propelisse para o abismo que se tornara uma espécie de palco e segundo lar para ela: lá no escuro amplo de sua perdição sabia desempenhar aquele papel nojento da auto-comiseração como prelúdio para o sexo. Fodia-lhe de raiva, como se a cada enfiada sua a estivesse bombeando para fora do poço em que se afundava até que ela, trazida de volta à superfície, pudesse vislumbrar ao gozar em seus braços o ar fresco da vida cotidiana e verdadeira daqui de cima – para, em seguida, saciado, soltar de uma vez a corda gasta com que a puxara, devolvendo-a numa queda mais rápida e cega ao fundo que lhe era familiar: uma desculpa qualquer, e o dinheiro para o táxi. Foda-se; se quer a miséria da alma, não seja eu a te negar alimento. Por que? Sei lá e o inferno que converse com o inferno.
Ou isso ou o sei-lá mudo e sincero e por isso não menos angustiante de Joana. O “lá” onde ela respondia saber era realmente um não-lugar. Fodê-la era portanto uma navegação utópica, uma exploração adentro do macio mar de nada mais quente e vazio imaginável, sobre o qual um bando de gaivotas enevoava o céu com um gorjeio tão branco e silencioso como seus insondáveis pensamentos. E foi ao comer uma salada de terça-feira que passou a língua lentamente pelas fibras macias e amanteigadas do coração de um talo de palmito: qual era exatamente a diferença entre comer Joana e um palmito, um travesseiro firme, um combinado de sashimis de salmão, o estofamento macio do carro do avô? Sei lá, e o silêncio das ondas de Joana, um horizonte e abismo.
Um comentário:
Dulcíssima descoberta esse blog! Amei as palavras poéticas aqui depositadas, do fundo do coração! Está nos meus favoritos já! Abraço! Bia
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