quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A franja e o ódio

A franja emprestava-lhe um ar desconcertantemente infantil sobre aquela barba grisalha: parecia um Ray Coniff gordo inimaginavelmente esbravejante sobre todos da repartição. A indefectível camiseta branca a ressaltar o azul claro da camisa engomada que a recobria todos os dias parecia um uniforme de super-herói pateticamente às avessas, a quem todos odiavam. Não havia quem não desejasse como a morte que se lhe abrissem os fundos da calça diante de todos, que o garrafão de água do bebedouro desabasse sobre sua engravatada barriga, que algum anônimo mais corajoso adicionasse a seu interminável café algum poderoso laxante. Quando descobriram-lhe a mulher paralítica as opiniões se dividiram: houve aqueles que, por isso o redimiram; foram, contudo, poucos, pois todos os demais passamos a odiá-lo ainda mais por agora essa tal, digamos assim, bravata moral – tão mais pretenciosa quanto mais secreta. O mal-estar que tal cisma silencioso provocou em pouco tempo recuperou para o mesmo lado os subitamente convertidos, tão cedo as mesquinharias cotidianas de seus vincos impecáveis e seus pares de canetas no bolso da camisa voltaram a mal-cheirar sua colônia de pinho pelo escritório.

Poucos anos depois, assim que se soube que houvera engravidado a secretária novata, o levamos para uma cervejada no segundo andar da sinuca onde o recebemos como a um heróico zagueiro.

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