quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Casa da Colina

Capítulo I

Tio Simão fumava dum tal rolo tão preto que por fim o sobrinho o aconselhou a que fosse deliciar-se com seu pito lá no pequeno telheiro que ficava ao fundo do jardim.

- Está muito bem, Carlos. Fique tranqüilo, Carlos - disse o velhote, placidamente - Que seja onde bem quiseres: o alpendre para mim calha perfeitamente... há de ser até mais agradável.
- Raios me partam - despejou ‘seo’ Estêvão com sua implacável franqueza - se me apercebo como é que vosmecê pode fumar de um tabaco assim tão medonhamente ordinário. Nem pólvora de espingarda, valha-o Deus!...
- Pois olhe que é bem bom, Estêvão - replicou condescendente, o velho - bem frio e molinho...

Todas as manhãs, por conseguinte, lá seguia para o telheiro, após um longo e meticuloso ritual de preparação que incluia, entre uma infinidade de manias delicadas, escovar muitas e demoradas vezes seu chapéu preto que, posto finalmente sobre a cabeça e tendo sua larga aba ajeitada toda à volta pelas falanges medianas dos dedos curvos, anunciava estar pronto para seu solitário deleite. Enquanto fumava, a aba do seu chapelão e a ponta do seu cachimbo eram bem visíveis do outro lado dos travessões da porta do alpendre. O seu ancoradouro - como ele chamava a fumarenta varanda que coparticipava com o gato e a ferramenta do jardim - servia-lhe também como caixa de ressonância e, todas as manhãs, cantarolava com satisfação uma de suas árias favoritas enquanto os círculos cinzentos e azuis do fumo subiam vagarosamente do cachimbo para o ar puro.

Estêvão, na grama clara de sua ignorância, nunca fora capaz de aceitar como alguém culto e sabedor das palavras mais difíceis como tio Simão se acomodara tão calmamente a uma vida de tamanha monotonia: ‘Não fazer nada é pra quem não sabe fazer nada, mesmo, que eu, se soubesse fazer metade das coisas que vosmecê já aprendeu eu é saía das minhas enxadas e ia ser doutor no mundo.’- sentenciava. Mas, secretamente, agradava-lhe vê-lo conversando às tardes de verão com o sobrinho, quando saíam ao pomar e ficavam durante toda a tarde tecendo longas e complicadas teias de argumentos e contra-argumentos nas quais pareciam divertir-se prendendo-se sempre em algum ponto perto da teologia, quando Deus parecia um qualquer assentado em seu banco dos réus, e decidiam-lhe a sorte todos os dias, e nenhum. Ao fim da tarde dissolviam-se todos os labirintos em que se metiam, quando uma chuva fortuita e vigorosa os enxotava de volta à casa do alto, na qual entravam já inevitavelmente ensopados mas risonhos como duas crianças grandes e desajeitadas. Estêvão amava tanto aquele menino que vira sofrer com as tragédias dos patrões, que aceitava mesmo esse pai bastardo e tardio, por vezes mesmo parasita, como o consolo para a longa melancolia de Carlos, que nunca conseguira, sozinho, curar. Nem a liberdade da campina, nem a calma do lago, nem o discurso secreto de suas flores, que tanto o fascinava, puderam despertar Carlos do torpor em que lentamente sucumbira com os anos e a ausência do patrão. Mas seu sorriso, ah!, seu sorriso trazia-o de volta à casa do alto como antes, quando não haviam outras especulações senão roubar uma porção da sobremesa às escondidas da mãe, que corria a dividi-la com Estevão, escondidos no porão. Quase não gostava de doces - deixava o saque praticamente inteiro para o menino, e ficava apenas a olhá-lo devorar os bocados repletos dos cremes gordos que emolduravam-lhe o imenso sorriso, de cuja satisfação contagiante era sempre impossível escapar, e compartilhavam, assim, cada um à sua maneira, daqueles alguns momentos de silenciosa e plena felicidade.

O velho Simão havia muito que viera morar com Carlos e os criados, na época em que a irmã mais velha, Margaret, ainda não havia partido para longe com seu arrogante major estrangeiro. Quando ficaram sós sentiram que sua amizade parecia haver esmorecido um pouco pela falta da saudável cumplicidade que a união de ambos contra um inimigo comum - a demasiadamente ponderada Margaret - provocava a cada um dos incontáveis momentos daquela longa e silenciosa luta das tensões domésticas - escondidas por detrás de gestos minúsculos dos seus mofinos dedos, inflexões sutis do seu macilentamente discreto falar, ligeiros e incômodos movimentos das sobrancelhas finas que arqueavam-se sobre seus olhos pequenos e inexpressivos... O lugar inevitável do bule ao centro geométrico da mesa, os pés molhados ao entrar mesmo pela porta dos criados, as dobraduras das cobertas de algodão branco sobre toda a pesada mobília do escritório, nenhum lugar ou situação dentro daquela casa escapavam a seu olhar doentio e severo. Simão passara a contar definitivamente com a irrestrita adesão de Carlos após o patético incidente dos tamancos de madeira que a tia-avó, ao desiludir-se finalmente com qualquer possibilidade de voltar a sair da cama, quanto menos a calça-los - e mais por senilidade que por capricho, deixara para a tola Margaret. Embora houvesse logo desistido de acomodá-los aos pés pequenos, e sob a velada - mas longe da discrição - reprovação de todos, Margaret insistiu um longo tempo em mantê-los sobre o toucador, como uma relíquia - e só mesmo não os pôs junto ao oratório pois imaginou que a mãe, então, ainda o consideraria uma profunda blasfêmia. Como alinhamento de planetas, ou outro qualquer desses tão maravilhosos quanto raros e improváveis fenômenos que se costuma associar à iminência de catástrofes, aconteceu de, encontrando numa manhã silenciosa e vazia o quarto de Margaret abandonado à luz que o invadia atingindo os tamancos sobre a penteadeira alta, como num momento de graça em que Deus envia um de seus raios de luz divina sobre o cálice no altar, Simão, entre extasiado e descrente, avançou lentamente em direção ao móvel escuro até que tivesse-os nas mãos, em frente ao espelho ovalado que o espaldava; segurando-os quase à altura dos olhos, verificou que não havia sequer uma só aparente sujidade ou poeira, como se nunca tivesse havido necessidade de limpá-los, ou ainda, como se nunca houvessem participado do mundo real - e a súbita percepção de tamanha e absurda devoção lhe causou tais engulhos, quem sabe até mesmo medo de que viesse a sentir-se culpado por atrever-se nesse patético santo-dos-santos, que, num lapso, deixou-os cair ao madeirame largo que forrava o assoalho. No espelho surgiu a pálida e muda imagem de Margaret, que logo fez com seu corpo esquálido eco aos tamancos no chão da câmara. Os pedaços de madeira, mais tarde colados toscamente como um aleijado de guerra a quem reimplantaram um membro, foram acomodados num fundo de gaveta qualquer de onde nunca mais saíram, e não fosse a providente e forte intervenção de Carlos em favor do desastrado tio, Margaret continuaria a destratá-lo por mais alguns maus anos. Aprenderam a rir juntos dos desatinos que as desmedidas da irmã levavam-na a cometer, e faziam de suas maledicências secretas seu credo, sua comunhão, e sua heresia. Ao elegerem como deus inversus a tola Margaret, sabiam que o que representava era não os ideais que queria fazer crer representar, mas a grotesca caricatura que de sua vertiginosa prática resultava.

Estêvão, por sua vez, sempre acreditara que Carlos haveria de dedicar-se à fé, e esperava que sua volta de Uppsala o trouxesse vestido com o traje sacerdotal. ‘Pois se Teologia não é pra fazer padre eu é que não sei mais como é que pode ser de o patrãozinho querer fazer os estudos de construção para não lidar com as obras...’, raciocinava, em sua desamparada frustração. Queria receber do menino um dia a bênção, quando adoecesse; queria também que suas rezas bem pronunciadas casassem suas filhas, e que olhasse severa e paternalmente pelos netos que elas lhe dariam, certo mais que tudo isso que não os veria ainda vivo. Desde muito cedo sentira nele o...

(continua)

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