quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Gone

You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?


- E. A. Poe


Ajuntava-os à medida que os encontrava, e os ia deixando assim, pelo apartamento, como montículos de cinza não consumida de um incêndio sem chamas; um lembrete de compras por fazer, um bilhete antigo de extrato da conta bancária, um brinco, formavam todos pequenos amontoados lembrando ex-votos em uma enorme cripta cinzenta abandonada, ou mesmo jamais habitada por defunto nenhum. Apenas ele, que sempre colhera frios os últimos beijos de todos os lábios que conhecera, enfeixava ali os restolhos dos ramalhetes de ventos esparsos, de sopros que, extinguindo-se, ainda insistiam em varrer de leve a superfície das paredes e dos móveis, como que acariciando-os com as unhas macias: o perfume glacial e pleno do sono começava a se perceber ainda longínquo, e sabia que até o fim da semana o ar estaria já completamente denso.

Ajoelhado, olhava os movimentos teatrais de suas mãos, segurando apenas sombras de grãos de areia cujo dourado se ia rapidamente apagando ao escorregarem por entre os dedos em direção à profundeza abaixo do chão, e deixava-se invadir lentamente pela ressaca aveludada das lágrimas que espumavam acima do vórtice ágil e escuro do estômago, para enfim destilarem-se cristalinamente para fora dos olhos. Permanecia sempre, nesse momento, em absoluto silêncio, sentindo seu corpo revolver-se em soluços vigorosos que por vezes chegavam a comprimir-lhe a traquéia com tal ímpeto que a asfixia momentânea provocava uma respiração forçosa e violenta. Após sentir que as lágrimas lhe houvessem percorrido toda a face, recolhia-as ao fim do maxilar e lavava meticulosamente com elas a extensão de ambas as mãos, acariciando-as com o líquido escasso, e beijava-as, como que sorvendo o quase nada que nelas restava; por fim, passava as mãos simetricamente pelo rosto, começando pelo centro e avançando por sobre os cabelos até a nuca, de onde retornavam, pelas laterais do pescoço, à frente, chegando juntas primeiramente as palmas, por fim os dedos todos, perfazendo um gesto de prece que fazia voltar aos lábios, para finalmente repousá-las sobre as coxas unidas.

Sempre choraria quando chegasse esse momento, não pela mesma comoção que a todos os outros assistia, mas porque o sabia necessário para que não esquecesse novamente como fazê-lo. Os anos que passara a seco demonstraram que ainda não tinha maturidade para abrir mão disso, e, assim, decidira-se por dedicar-se ao cultivo, econômico e consciente, quase ritualístico, desses instantes que sabia que, de tempos em tempos, se fariam repetir diante de si - uma mudança aqui na voz desistente, outra ali na entonação melancólica, na queda doce, acolá nos olhos anestesiados e vagarosos, na boca marejada: sabia, passo a passo, todos os sinais indicadores do fim do drama cujo desfecho decidira, assim, pontuar com seu pranto. As primeiras vezes lhe trouxeram de fato a vertigem adstringente à boca, quando acreditava que, impotente para enlouquecer em fúria, atirando-se aos murros e chutes às paredes, apenas deixar-se-ia desfalecer em direção ao chão, o imenso e plano colo da mãe fria e inexistente que sempre lhe abrigava a angústia aconchegando-o ao seio de sua dureza. Encaracolado no solo, abraçava então os joelhos de encontro ao peito, e, espremendo um clepsídrico gotejar de pequenas poças no repouso lateral de seu rosto, aguardava a lenta chegada dos minúsculos vermes das dormências que brotavam do chão a invadir-lhe aos poucos as extremidades do corpo que se ia cobrindo numa parte ou outra com a manta estreita das cãimbras. A parte realmente terrível era saber que, nessa luta particular, privada de qualquer movimento, em que era o único agressor e vítima, sabia-se sempre inteiro - sem troféus de mutilações, restava-lhe entregar-se a apenas imaginar as delgadas rendas das luvas de sangue a vestir-lhe sedosamente os nós proeminentes da mão cerrada, que untava com a saliva salgada pelas lágrimas, ou as marcas invisíveis de uma violência perita e avassaladora, daquela invariável tortura que fazia com que os contáveis minutos comprimissem, grau a grau, toda a extensão das laterais de seu crânio.

A fadiga trouxe-lhe pontualmente o sono, e, enquanto sentia as pálpebras desistirem, lembrou-se de que foi logo por ocasião da sexta vez, desde que resolvera voltar a sensibilizar-se com o fato, que não dormiu no mesmo lugar em que recebera a derradeira despedida, e apenas circunstancialmente, uma vez que se dera sobre os trilhos daquele metrô, e aconteceu mesmo que, depois disso, não houvesse achado que isso fosse mais necessário. Aquele dia de fato fora, por alguma coisa que nunca discernira bem, diferente: já havia talvez alguns bons anos que não lhe acometia, e de tal maneira, aquela mesma sensação de estar vivendo na silenciosa lentidão do lado de fora da vitrine na qual o mundo, como uma espécie de presépio miraculoso, gigantesco e brutal em exposição, parecia continuar a mover todas as suas inúmeras, invisível e misteriosamente interligadas partes. Após a rápida imagem da tremulação do suéter rosado de Bianca, aqui e ali aspergido com o negro voluntarioso de sua maquiagem que escorrera-lhe pelo rosto, lembrava-se apenas de haver levantado os joelhos de sua calça bezuntados pela camada acamurçada de poeira que a graxa fazia acumular-se sobre o chão de concreto, amparado pelos policiais que acorreram à sombra surgidos da luz de detrás, e que, tão logo repetira quase que automaticamente a rotina decorada dos depoimentos, saira para o frio das ruas do centro que, àquela hora, ainda formigava de pernas agitadas, e trazia o perfume de mil outros e mesmos nomes a desfilar ao longo de seu descaminho. E nomes, e nomes, e nomes, e nomes... No início era mais especialmente difícil quando o nome era mais comum, pois deparava-se desavisadamente com a lembrança evocada por essa capa que agora vestia outra pessoa, e no começo não sabia se fugia da constragedora estranheza ou se procurava dentro dos olhos da desconhecida a sombra escondida daquela cujos ecos rebatiam-se nos corredores longos de sua memória. Logo os nomes deixaram de ser nomes, e passaram a ser como a cor dos cabelos, o formato das unhas, o calor do corpo, que reconheceria às vezes em uma ou em outra como senhas que a natureza deixava para lembrá-lo da ineludável irmandade de todos a todos e a tudo. Talvez por essa razão evitara sempre se acostumar a tratar quem quer que fosse por quaisquer apelidos particulares; usava apenas os nomes, contudo, com tal respeito e ternura que isso chegou a firmar-se para todos que o conheciam como uma característica senão charmosa de seu trato. Algumas poucas vezes chegara a comprar alguns filhotes de animais domésticos, sempre diferentes, ou mesmo quaisquer objetos de adorno que figurassem alguma espécie de ser animado, aos quais secretamente chamava pelo nome do amigo ou de quem então perdera; não suportara, a princípio, mais que alguns anos aquelas presenças que, em sua transmutação, testificavam apenas o caráter irreversível daquelas outras ausências – contudo, ao perceber que o que de fato, e impassivelmente, testificavam, era, sim, o caráter irreversível de todos os fatos particulares passados, esvaziou-os de toda dor ou exigência, e toda aquela rica multidão lentamente voltou a povoar suas mobílias, sendo que alguns acompanhavam-no mesmo quando mudava-se.

Haviam-se passado quatro horas e vinte e três minutos quando finalmente adormeceu.

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