quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Uma visão singular

Viajava acomodado no banco traseiro do utilitário Lincoln verde já não tão escuro que meu avô tradicionalmente cedia para as inevitáveis expedições ao camping que meu pai empreendia, às quais éramos todos irrevogavelmente convocados. Meu irmão mais novo dormia reclinado sobre minhas pernas, e sei que, se porventura reclamasse do amortecimento que tal posição em mim produzia ou se me virasse um pouco de modo a fazê-lo escorregar para o lado, necessariamente ele acordaria, e a culpa por seus choros intermináveis ou suas irreprimíveis regurgitações recairia invariavelmente sobre minha impaciência.

O passatempo com o qual costumava preencher minhas longas vigílias de resignação era o de contemplar a inconstante paisagem que se atirava furiosamente para trás, ora árida com suas árvores retorcidas, ora verdejante e pontilhada por antigas e solitárias cabanas, estábulos ou capelinhas, ora penteada de plantações que coloriam de verdes e texturas sempre distintas as planícies e os pequenos morros. Embalavam a marcha de minha monotonia as melodias perdidas que meus pais cantarolavam sofrivelmente vez ou outra no distante mundo do banco da frente; canções que quando eles mesmos as aprenderam eram já antigas e exalavam todas, quem sabe pela afetação ingênua da letra, quem sabe pela linha do contralto que minha mãe costumava tecer como bordão, uma espécie de lânguida nostalgia que, segundo eles e os outros casais amigos que compartilhavam relativamente de uma mesma época, era em que consistia justamente seu charme.

Assim, com os olhos turvados pelo rubro magenta que embrasava o horizonte em mais esse fim de viagem rumo às inatingíveis areias de camping do Sul, com a testa marcada pelos inúmeros solavancos de encontro ao vidro lateral, as pernas amortecidas e o repertório de meus pais esgotado, foi que repentinamente vi, a uma distância não muito fugidia, bem no meio da campina que ladeávamos, uma imagem que tanto me perturbou os sentidos que não fui sequer capaz de voltar-me para meus pais e chamar-lhes a atenção, interrompendo o súbito silêncio contemplativo no qual pareciam estar absortos ao findar das cantilenas. Era um ser que por muito tempo povoara a eclética galeria de minhas fantasias – meio homem, meio cavalo, dorso nu e musculoso, a correr vigorosamente, como que movido pela força de um vento de fogo e a energia de mil vagas turbulentas em meio a uma tempestade. Seus cabelos e barbas eram tão exatamente encaracolados quanto assim ditara a imaginação aos ilustradores dos antigos volumes que costumavam me entreter, quando não repousavam na parte inferior da estante do escritório de meu pai. Ele corria paralelamente ao carro, como se o acompanhasse sem muito esforço, quase que por delicadeza e, num dado momento, muito curto mas tão certo quanto estar eu hoje a escrever este fantástico e ingênuo relato, voltou-se bruscamente em nossa direção e, por um instante, sei que ele olhou diretamente em meus olhos.

(continua...)

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