
O passatempo com o qual costumava preencher minhas longas vigílias de resignação era o de contemplar a inconstante paisagem que se atirava furiosamente para trás, ora árida com suas árvores retorcidas, ora verdejante e pontilhada por antigas e solitárias cabanas, estábulos ou capelinhas, ora penteada de plantações que coloriam de verdes e texturas sempre distintas as planícies e os pequenos morros. Embalavam a marcha de minha monotonia as melodias perdidas que meus pais cantarolavam sofrivelmente vez ou outra no distante mundo do banco da frente; canções que quando eles mesmos as aprenderam eram já antigas e exalavam todas, quem sabe pela afetação ingênua da letra, quem sabe pela linha do contralto que minha mãe costumava tecer como bordão, uma espécie de lânguida nostalgia que, segundo eles e os outros casais amigos que compartilhavam relativamente de uma mesma época, era em que consistia justamente seu charme.
Assim, com os olhos turvados pelo rubro magenta que embrasava o horizonte em mais esse fim de viagem rumo às inatingíveis areias de camping do Sul, com a testa marcada pelos inúmeros solavancos de encontro ao vidro lateral, as pernas amortecidas e o repertório de meus pais esgotado, foi que repentinamente vi, a uma distância não muito fugidia, bem no meio da campina que ladeávamos, uma imagem que tanto me perturbou os sentidos que não fui sequer capaz de voltar-me para meus pais e chamar-lhes a atenção, interrompendo o súbito silêncio contemplativo no qual pareciam estar absortos ao findar das cantilenas. Era um ser que por muito tempo povoara a eclética galeria de minhas fantasias – meio homem, meio cavalo, dorso nu e musculoso, a correr vigorosamente, como que movido pela força de um vento de fogo e a energia de mil vagas turbulentas em meio a uma tempestade. Seus cabelos e barbas eram tão exatamente encaracolados quanto assim ditara a imaginação aos ilustradores dos antigos volumes que costumavam me entreter, quando não repousavam na parte inferior da estante do escritório de meu pai. Ele corria paralelamente ao carro, como se o acompanhasse sem muito esforço, quase que por delicadeza e, num dado momento, muito curto mas tão certo quanto estar eu hoje a escrever este fantástico e ingênuo relato, voltou-se bruscamente em nossa direção e, por um instante, sei que ele olhou diretamente em meus olhos.
(continua...)
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