quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

There were more things

Calçou as luvas lentamente, na neblina. Caminhava com os pensamentos, a passos vagarosos e largos, como um autômato preguiçoso. O frio e a umidade das três horas invadiam-lhe as pálpebras, imprimindo aquela sensação angustiante de uma ácida secura. Retirou do bolso interno da sobrecasaca um pequeno e achatado frasco metálico com fino acabamento em couro e prata do qual, havendo desatarrachado a delicada e brilhante tampa com um gesto brusco e afetado, sorveu dois goles miúdos mas vigorosos, como beijos tomados à força.

Pôs-se finalmente em movimento, deixando que uma passada se sucedesse à outra num letárgico moto perpetuo, compassado e vazio. Piscava aos poucos, sem qualquer pressa, como que a brincar com cortinados de cobre. O pesado sino do convento no cume da ladeira tortuosa dobrava sua melancólica monodia chamando os monges para a liturgia de Matinas, e ele esboçou um movimento nos lábios lembrando o cacoete dominical dos responsórios em latim que nunca entendera. ...'Filho de um avarento general das cavalariças no auge de sua decadência e uma rainha louca, velha e ciumenta – ', costumava dizer, 'o Estado Imperial Britânico...', pausava, '...e a Santa Igreja Apostólica e Católica Romana'. Et unam sanctam catholicam et apostolicam ecclesiam: o bronze do dogma reboava a onipotência dos simulacros em suas memórias.

Estancou a arrastada marcha, como que a tentar conter a hemorragia de demônios que dançavam em jorro sob suas têmporas. Sentiu uma brisa gélida que, invadindo as frestas da gola, acariciava-lhe morbidamente a nuca e, quase que num reflexo nervoso, levou novamente a mão ao bolso interno. Subitamente, travou a respiração e segurou o movimento, pondo-se a olhar devagar o frasco trabalhado entre os dedos, expelindo aos poucos o ar represado. Eram, na verdade, dois tipos nobres de couro bastante próximos, no entanto de duas texturas bastante distintas a um olhar um pouco mais educado em tais apreciações: as quadriculações minúsculas que ligavam os inúmeros poros em caóticos mosaicos monocromáticos eram onde, pela profundidade dos sulcos ou suavidade das linhas, assinalava-se as diferenças de origem, idade e até mesmo tipo de criação. O aroma do couro tratado mesclava-se ao odor forte da bebida e a restos de perfume que a roupa ainda guardava. Lembrou-se de Lygia. Levantou ligeiramente os olhos e quis espremê-los numa lágrima improvável, numa única e miserável gota salgada e morna de, quem sabe, dois pences. Já não chorava mais desde menino, e realmente não conseguia crer serem tantos os momentos que o justificassem; um homem deveria dar o lugar de suas nostalgias a convicções. Noite de St. Valentin, caminhava sozinho e ria-se do que há de patético nos amores alheios. Ria de um riso amargo, preso nas mandíbulas como em um javali enforcado e esquecido à beira do caminho por ser já velho, quem sabe um pouco doente, e não compensar o esforço da carregadura.

A velha ponte de King’s Road... Sempre com aquele ar enevoado, mesmo nos dias de sol pleno, graças aos escultóricos rendados góticos que lhe valiam as atenções de todos os passantes, mesmo aqueles que cresceram à sua sombra...

Parou novamente, dessa vez com calma, e sacudiu de leve as pontas dos pés, olhando a poeira cascalha cair aos poucos dos vãos miúdos dos recortes do bico do sapato, indo parar no delicado friso da entresola ou esfarelando devagar no chão da calçada centenária. Ouviu um apito rouco e triste lamentar-se longe, provavelmente um daqueles pesados rebocadores voltando para as docas, impregnado pelo denso ar marítimo. Mesmo à distância, sentia-se às vezes ainda inspirando desse mesmo e salgado ar, que entrava com esforço pelos pulmões cansados, carregando consigo o mar inteiro, e todo o seu tédio, e toda a sua saudade...

Logo começaria a clarear, e então já não mais...

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