quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Gourmandises

toda vez que se utilizava de fita dental fazia-o às escondidas, desfrutando desse prazer solitário como um reconhecimento secreto e dadivoso de seu corpo a si mesmo, único conaisseur apto a julgar tão particular cultura. esperava em média dois dias durante os quais comia seus pães, macarrões e especialmente carne, inspecionando cuidadosamente a parte posterior dos incisivos, as laterais externas dos molares e o generoso vão do pré-molar inferior direito, cuidando que abrigassem os delicados depósitos da massa clara que ia solidificando-se aos poucos junto à gengiva como um anel de coral. com a língua inspecionava regularmente o progresso da textura e a riqueza da densidade, com os finos e hábeis dedos indicadores promovia os melhores acúmulos e aparava-lhes os excessos, os quais analisava-lhes cuidadosamente a cor, o brilho, todas as fases do sabor e bouquet durante a maturação e mesmo suas resistências ao corte. findo o prazo habitual e julgado o processo concluído, esperava uma longa hora em que pudesse dispor sem preocupações do banheiro e calmamente, como numa celebração ritual, retirava as pequenas coroas dos seus ninhos com a ponta metálica de um cortador de unhas e admirava-lhes primeiramente a firmeza ao toque, em seguida elevava-as num meio caminho em direção à luz sobre o espelho para reconhecer-lhes as particularidades de feição, levando-as então várias vezes junto às narinas para acolher e reconhecer seus aromas antes de finalmente degustá-las ora quebrando-as entre os dentes, ora apenas deixando que se dissolvessem entre a língua e o céu da boca, como numa comunhão. anotava metodicamente os progressos em um caderninho de brochura que escondia dentro do estojo de couro dos instrumentos de manicure e o marido nunca o encontrou.

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