quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sobre limites

Descobriu que havia um outro velho, até quanto percebera tão caprichoso quanto ele mesmo, que deixava o rádio sintonizado sempre na mesma emissora. Importuná-lo em sua cadeira de rodas por uma boa meia hora a troco de banalidades de quem não sabe o que fazer para prolongar um momento sem pretexto não lhe pareceu suficiente, e passou a frequentá-lo quase que diariamente, buscando cumplicidades e simpatias imaginárias. A verdade é que o descoberto tinha, além de uma insuportável timidez que o constrangia brutalmente a aturar os mais invasivos inconvenientes, uma seqüela de derrame que o impedia de articular sua fala na velocidade mínima suficiente para aproveitar as vírgulas de um interlocutor mais falastrão e menos paciente quando quisesse argumentar qualquer coisa, quem diria para tentar findar o suplício. Conseguia, quando muito, armar os músculos da face numa expressão de incômodo e ansiedade, à qual o inconveniente aborrecedor inevitavelmente respondia com algo tão cínico quanto ‘você está mesmo bem?’ no princípio, e, depois de algum tempo, naturalmente, passava a fingir não perceber mais. Não bastando as longas palestras na calçada, logo o importuno invadiu-lhe também a cozinha sob pretexto de preparar café para ambos, enquanto conversavam; o café, no entanto, era muito forte e doce, e o velho já não mais suportou: retirou a arma de sob o assento da cadeira de rodas, e com quatro tiros no peito e na barriga, matou o pretendente a colega.

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