A hinódia protestante deve muito à música vitoriana que, temperada pelo puritanismo redneck, perfazem um blend tão entorpecente quanto o bourbon que rega as noites de enforcamentos e cruzes em chamas. Não sei se foi o amor que tenho à minha mãe-preta (Dona Evinha, hoje com 96 anos), ou os anos todos de castração estetizada com harmonias e entoações sugestivas - até mesmo o pitch apropriado de vibrato; o fato é que em minha adolescência descobri no jazz, em resposta ao imenso 'NÃO' à vida da carne e 'do mundo' cantado pela música branca sulista protestante, um poderoso 'SIM' ao corpo e à vida mundana em todas as suas maravilhosas e terríveis instâncias. O jazz não dá voz apenas à ternura lasciva, à deliciosa sacanagem, mas também à dor da traição, do abandono, da saudade. 'A cigarette that bears a lipstick's traces' e todas essas foolish things que compõem o mundo dos sentimentos silenciados pela moral religiosa...
É claro que não pretendo reduzir o jazz a apenas esse aspecto, uma vez que o jazz também bebeu do soul e manteve ao longo das décadas essa espécie de promiscuidade com a música gospel - lembrando que a liturgia negra (sobretudo a batista) sempre teve um caráter muito particular, com seus coros e bandas repetindo até o êxtase os refrões sobre os quais o pregador improvisava, bem à maneira do espírito tribal que atravessou o atlântico nos porões dos navios. Uma forma de culto certamente muito diferente do protestantismo branco - em lugar da contida e asséptica intelectualização da fé, em lugar da sublimação dos ritmos do corpo, nos ritos negros os cantos, danças, palmas e êxtase eram os veículos de expressão da alma.
A própria palavra 'jazz' marca isso em suas diversas etimologias. 'Jazz' significa primeiramente a habilidade ou talento sexual. Como as moças negras que, olhando o jeito de olhar e andar de um rapaz que se aproxima, diriam "hmm... he has some jazz, doesn't he?" ou dos rapazes negros que observam sorrindo uma moça subir a escada: "oh, she has that jazz, man...". Mesmo em português usamos outras expressões pra isso e que vêm do mundo do jazz: 'fulano tem um swing...' ou 'fulano tem o groove...' ou 'fulana tem uma pegada...'. 'Jazz' significa também o barulho que se faz ao fazer sexo. Como na mesa de café da manhã da pensão negra, a velha ranzinza reclamaria da indiscrição do quarto ao lado: 'Goddamn, I've heard that jazz all nite long... and I don't have to listen to this...'. Por fim, 'jazz' significa o próprio ato sexual em si. Como o malandrão pimp que sorri um milhão de dentes para a mocinha e diz 'let's jazzzzz, babe...'.

O espírito do 'jazzman' é o do homem 'do mundo', do ponto de vista do protestantismo puritano, sulista e branco - mas o quanto o 'jazzman' sabe disso, se apropria disso, questiona sua origem e dá a volta nela não poderia ter tido melhor expressão, com a verve e elegância que lhes eram características, na 'It Ain't Necessarily So', de Gershwin, praticamente um sermão às avessas, em que o malandrão Sportin' Life ironiza a imensa improbabilidade das histórias da bíblia.
It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
De things dat yo' liable
To read in de Bible
It ain't necessarily so
Li'l David was small but oh my
Li'l David was small but oh my
He fought big Goliath
Who lay down and dieth
Li'l David was small but oh my
Oh Jonah he lived in de whale
Oh Jonah he lived in de whale
For he made his home
In dat fish's abdomen
Oh Jonah he lived in de whale
Li'l Moses was found in a stream
Li'l Moses was found in a stream
He floated on water
'Til ole Pharaoh's daughter
She fished him she says from that stream
It ain't necessarily so
It ain't necessarily so
Dey tell all you chillun
De debble's a villain
But 'taint necessarily so
To get into Hebben
Don't snap for a sebben
Live clean, don' have no fault
Oh I takes de gospel
Whenever it's pos'ble
But wid a grain of salt
Methus'lah lived nine hundred years
Methus'lah lived nine hundred years
But who calls dat livin'
When no gal'll give in
To no man what's nine hundred years
I'm preachin' dis sermon to show
It ain't nessa, ain't nessa
Ain't nessa, aint' nessa
It ain't necessarily so